segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Viagens de Cecília Meireles

Revisitando as Crônicas de viagem de Cecília Meireles, selecionei alguns entremeios para este início de semana. Os textos citados foram escritos em 1953 (o último em 1954). 
- Sobre o turista: 
"Quanto mais viajo, mais me torno antiturística. Como pode a bela Itália ter sossego com estas ondas e ondas de forasteiros que a atravessam de ponta a ponta, como formigueiros em mudança? É verdade que, indústria tão bem organizada, em país de tanta abundância artística e tanta variedade de paisagens e costumes, só pode dar este resultado que vemos. E fico triste ao pensar que turistas são como essas pessoas que querem visitar à força uma celebridade qualquer e, quando o conseguem, não adianta nada - não a entendem suficientemente para justificarem a perda de tempo que lhe causaram, ou a pequena perturbação do ritmo de sua vida. 
Mas os turistas aumentam todos os dias. E a primavera já vem, cheia de jacintos e violetas. (Há qualquer coisa errada, neste mundo...)". 
- Paris: 
"Dos museus, não se pode falar, porque seria fazer catálogos de obras-primas. Infelizmente, os bandos turísticos que desfilam em passo de ganso pelas salas e pelos corredores perturbam todo o efeito de cada quadro, - que é assunto de contemplação, e não desprende sem mistério de repente, por mais que se esforce o guia, também já fatigado dos visitantes. 
É uma dor no coração ver que aqueles trágicos lugares por onde Maria Antonieta andou sofrendo são dos mais belos para serem agora visitados, mesmo quando o guarda, com certo ódio, - talvez profissional - dramatize episódios violentos, feroz ainda a outra realeza, testas coroadas, mulheres soberbas e outras maneiras de dizer". 
- Amsterdam: 
"Com esquadros imaginários, com lápis imaginários, pus-me a traçar vagos desenhos nesse fino papel imenso, da noite desdobrada: pontes sobre os séculos, sobre os oceanos, entre as idéias... Meus esquemas afogavam-se na impalpável matéria da noite. Certamente, se dormisse, não teria sonho mais fluido, mais fugitivo, mais deslembrado. 
Pela madrugada, a cidade começou a voltar: delineavam-se as ruas, lá embaixo, muito longe... Ouvi ou imaginei campainhas de invisíveis cavalos, acolchoadas em névoa?"
- Roma: 
"Em qualquer lugar do mundo, uma coleteira é uma senhora que faz coletes. Mas aqui em Roma existe uma que é um espírito do escultora trabalhando com cetins, elásticos, barbatanas e colchetes. Ela não pergunta às freguesas: 'Qual é o seu número?' e tira secamente da prateleira o artigo que lhe pedem. Não, esta não é como as outras. Esta contempla a freguesa de perto, de longe, de frente, de lado, abre os braços, fala de museus, desenha no ar perfis de sílfides, e sua linguagem é tão aérea, transparente, lunar, que antes de comprar o espartilho a candidata já se sente reduzida às dimensões a que se destinam aqueles aparelhos. Quando, porém, tal redução é visivelmente impossível, - coisa fácil de acontecer não só a quem mora na Itália, mas até a quem por lá passa, dada a generosidade das massas e dos vinhos, - então é que a escultora se revela insigne psicóloga. Discorre sobre a solidez da beleza clássica, planta-se na sua loja como um mármore num robusto pedestal, declama com inspiração clássica o elogio dos deuses triunfais e convence a interlocutora, um pouco humilhada com o seu peso, de que a beleza feminina é essencialmente exuberante. (A julgar pela intensidade da sua representação, quase poderia dizer - essencialmente calipígia)". 


- E esta última, sobre a Índia, vai para a minha querida amiga Tércia:
"Como vai o Ocidente compreender essa grandeza do despojamento indiano, da sua não-violência, da sua moderação - quando a máquina inventou uma velocidade inumana, e já ninguém pode parar para refletir, para estudar, para penetrar séculos, idiomas, filosofias, - se todos querem viver imediatamente, confortavelmente, a serviço do corpo e da hora? 
Ponho-me a pensar no que deve ser a sabedoria. E como praticá-la. E tudo é longe, terrivelmente longe: não há convênios, conferências, congressos que transformem o homem de egoísta em generoso, de violento em pacífico, de cruel em manso, de cego em lúcido... O processo de edificação humana é lento, devia ser unânime, constante...
Como somos cada vez em um mundo menor, mais próximo, unido no mesmo destino terreno, devíamos acertar a nossa marcha numa certa direção e com um certo ritmo. Entre a vida e a morte - esse espaço tão curto - devíamos ser melhores do que temos sido e estamos sendo". 

Um comentário:

  1. Ai, maravilhoso! Adorei tudo! Índia, Holanda, Itália, França! Como é bom viajar na sabedoria de Cecília!

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