Revisitando as Crônicas de viagem de Cecília Meireles, selecionei alguns entremeios para este início de semana. Os textos citados foram escritos em 1953 (o último em 1954).
- Sobre o turista:
"Quanto mais viajo, mais me torno antiturística. Como pode a bela Itália ter sossego com estas ondas e ondas de forasteiros que a atravessam de ponta a ponta, como formigueiros em mudança? É verdade que, indústria tão bem organizada, em país de tanta abundância artística e tanta variedade de paisagens e costumes, só pode dar este resultado que vemos. E fico triste ao pensar que turistas são como essas pessoas que querem visitar à força uma celebridade qualquer e, quando o conseguem, não adianta nada - não a entendem suficientemente para justificarem a perda de tempo que lhe causaram, ou a pequena perturbação do ritmo de sua vida.
Mas os turistas aumentam todos os dias. E a primavera já vem, cheia de jacintos e violetas. (Há qualquer coisa errada, neste mundo...)".
- Paris:
"Dos museus, não se pode falar, porque seria fazer catálogos de obras-primas. Infelizmente, os bandos turísticos que desfilam em passo de ganso pelas salas e pelos corredores perturbam todo o efeito de cada quadro, - que é assunto de contemplação, e não desprende sem mistério de repente, por mais que se esforce o guia, também já fatigado dos visitantes.
É uma dor no coração ver que aqueles trágicos lugares por onde Maria Antonieta andou sofrendo são dos mais belos para serem agora visitados, mesmo quando o guarda, com certo ódio, - talvez profissional - dramatize episódios violentos, feroz ainda a outra realeza, testas coroadas, mulheres soberbas e outras maneiras de dizer".
- Amsterdam:
"Com esquadros imaginários, com lápis imaginários, pus-me a traçar vagos desenhos nesse fino papel imenso, da noite desdobrada: pontes sobre os séculos, sobre os oceanos, entre as idéias... Meus esquemas afogavam-se na impalpável matéria da noite. Certamente, se dormisse, não teria sonho mais fluido, mais fugitivo, mais deslembrado.
Pela madrugada, a cidade começou a voltar: delineavam-se as ruas, lá embaixo, muito longe... Ouvi ou imaginei campainhas de invisíveis cavalos, acolchoadas em névoa?"
- Roma:
"Em qualquer lugar do mundo, uma coleteira é uma senhora que faz coletes. Mas aqui em Roma existe uma que é um espírito do escultora trabalhando com cetins, elásticos, barbatanas e colchetes. Ela não pergunta às freguesas: 'Qual é o seu número?' e tira secamente da prateleira o artigo que lhe pedem. Não, esta não é como as outras. Esta contempla a freguesa de perto, de longe, de frente, de lado, abre os braços, fala de museus, desenha no ar perfis de sílfides, e sua linguagem é tão aérea, transparente, lunar, que antes de comprar o espartilho a candidata já se sente reduzida às dimensões a que se destinam aqueles aparelhos. Quando, porém, tal redução é visivelmente impossível, - coisa fácil de acontecer não só a quem mora na Itália, mas até a quem por lá passa, dada a generosidade das massas e dos vinhos, - então é que a escultora se revela insigne psicóloga. Discorre sobre a solidez da beleza clássica, planta-se na sua loja como um mármore num robusto pedestal, declama com inspiração clássica o elogio dos deuses triunfais e convence a interlocutora, um pouco humilhada com o seu peso, de que a beleza feminina é essencialmente exuberante. (A julgar pela intensidade da sua representação, quase poderia dizer - essencialmente calipígia)".
- E esta última, sobre a Índia, vai para a minha querida amiga Tércia:
"Como vai o Ocidente compreender essa grandeza do despojamento indiano, da sua não-violência, da sua moderação - quando a máquina inventou uma velocidade inumana, e já ninguém pode parar para refletir, para estudar, para penetrar séculos, idiomas, filosofias, - se todos querem viver imediatamente, confortavelmente, a serviço do corpo e da hora?
Ponho-me a pensar no que deve ser a sabedoria. E como praticá-la. E tudo é longe, terrivelmente longe: não há convênios, conferências, congressos que transformem o homem de egoísta em generoso, de violento em pacífico, de cruel em manso, de cego em lúcido... O processo de edificação humana é lento, devia ser unânime, constante...
Como somos cada vez em um mundo menor, mais próximo, unido no mesmo destino terreno, devíamos acertar a nossa marcha numa certa direção e com um certo ritmo. Entre a vida e a morte - esse espaço tão curto - devíamos ser melhores do que temos sido e estamos sendo".
Ai, maravilhoso! Adorei tudo! Índia, Holanda, Itália, França! Como é bom viajar na sabedoria de Cecília!
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