quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

André Gide, o "homicídio sem motivo" e o belo Tratado do Narciso

Já quis provocar um debate entre meus passados alunos de Direito Penal a respeito da imaginária figura do "homicídio sem motivo". Ocorreu-me que o debate jurídico tradicional parte do pressuposto falso de que tal figura possa existir. Na doutrina jurídico-penal, discute-se o tratamento normativo que se deve conferir à ausência de motivo no crime de homicídio: a) se é caso de homicídio qualificado, pela equiparação da ausência de motivo ao motivo fútil (motivo banal, sem importância); b) ou se é caso de homicídio simples, por não estar a ausência de motivo prevista em lei como circunstância de qualificação do crime. Ora, mas esse debate só tem sentido se realmente existir o tal do homicídio sem motivo. Mas toda ação humana - ação entendida como exteriorização de vontade, que é a única com interesse jurídico-penal - se vincula a uma motivação; fora disso estamos no plano dos atos reflexos, que não chegam a constituir conduta juridicamente relevante. 
O leitor já estará se perguntando que tem isso a ver com o André Gide referido no título e mostrado na foto desta postagem. É que Gide, notável escritor francês do início do Século XX, escreveu um romance chamado Les Caves du Vatican (Os Subterrâneos do Vaticano) em que um sujeito, objetivando cometer um "ato gratuito" que ponha a Polícia em situação de embaraço, resolve empurrar outro de um trem, com o que pratica um pretenso "homicídio sem motivo". Para isso, o agente se coloca em elucubrações mentais a respeito de possível doença padecida pela vítima. Ora, mas nem aí se pode identificar conduta imotivada: o sujeito matou motivado pelo objetivo de embaraçar a Polícia ante uma imaginária situação de ausência de motivo. Aí está. Outro exemplo literário que pode conduzir ao mesmo debate é a situação dramática de L'Étranger, do argelino Albert Camus.
Assim postas as coisas, o tratamento jurídico a se emprestar ao assunto não sai do âmbito meramente probatório: quer dizer, se não se consegue provar o motivo, claro, o caso é de homicídio simples. Não quer isso dizer que o motivo não exista; existirá sempre em qualquer ação de interesse para o Direito Penal (o ato reflexo, não sendo ação, impede a própria imputação do homicídio). 
Mas esse post nem se destinava a tratar disso. Para ultrapassarmos a aridez desse debate filosófico, cito um trecho genial, mais artístico do que fenomenológico, do Traité du Narcisse (Tratado do Narciso) de André Gide, para deleite dos leitores (vai no original e em tradução livre minha):


"Les livres ne sont peut-être pas une chose bien nécessaire; quelques mythes d’abord suffisaient; une religion y tenait tout entière. Le peuple s’étonnait à l’apparence des fables et sans comprendre il adorait ; les prêtres attentifs, penchés sur la profondeur des images, pénétrait lentement l’intime sens du hiéroglyphe. Puis on a voulu expliquer ; les livres ont amplifié les mythes ; - mais quelques mythes suffisaient.
Ainsi le mythe du Narcisse : Narcisse était parfaitement beau, - et c’est pourquoi il était chaste ; il dédaignait les Nymphes – parce qu’il était amoureux de lui même. Aucun souffle ne troublait la source, où, tranquille et penché, tout le jours il contemplait son image... – Vous savez l’histoire. Pourtant nous la dirons encore. Toutes choses sont dites déjà ; mais comme personne n’écoute, il faut toujours recommencer."


"Os livros talvez não sejam bem uma coisa necessária; alguns mitos antigamente bastavam; uma religião os abarcava por inteiro. O povo se admirava com a aparência das fábulas e sem compreender as adorava; os padres atentos, debruçados sobre a profundidade das imagens, penetravam lentamente o íntimo sentido do hieróglifo. Depois quiseram explicar; os livros amplificaram os mitos; - mas alguns mitos já bastavam.
Assim o mito do Narciso: Narciso era perfeitamente belo; - e por isso era casto; desdenhava as Ninfas – porque era apaixonado por si mesmo. Nenhum sopro lhe turbava o estado em que, tranqüilo e reclinado, por todo o dia ele contemplava sua imagem... – Você sabe a história. Entretanto nós a diremos novamente. Todas as coisas já estão ditas; mas como ninguém escuta, é preciso sempre recomeçar." (tradução de Sérgio Rebouças)   

2 comentários:

  1. Que maravilha, meu amigo! É isso mesmo! Toda a arte é um recomeço, porque de alguma forma ainda não nos convencemos da existência do sublime.

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  2. Sou um leitor de Gide, meu objeto de estudo no mestrado em Letras... Como sou, também, advogado, fiquei feliz de ver esta relação que você fez, coisa que eu mesmo nunca fiz. Gostei muito.

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