sábado, 28 de janeiro de 2012

Stacey Kent

Mais uma passagem pelo jazz contemporâneo me traz boas surpresas com a cantora Stacey Kent, que interpreta em francês e em inglês. Em atividade desde 1997 e multiplamente premiada, Kent gosta de Tom Jobim e de bossa nova, tendo até gravado em 2001 o álbum Brazilian Sketches. A maior expressão de sua voz bonita, leve e incisiva, assim como de excelentes interpretações e arranjos instrumentais , está no álbum Breakfast on the morning tram, de 2007, um primor musical. Deste disco - que contém uma versão francesa do Samba da bênção de Vinicius de Moraes e Toquinho e uma distinta revisita a What a wonderful world - ofereço aos leitores a bela faixa Landslide


No vídeo vai - de outro álbum mais recente - Les eaux de mars, versão francesa das Águas de março de Jobim:

 

Entremeios Colombianos

Esta semana andei recordando a viagem que Roberta e eu fizemos a Bogotá e a Cartagena de Índias, na Colômbia. Duas cidades bem diferentes entre si, a realçar o contraste que é marca colombiana: Bogotá fria, escura, alta; Cartagena quente, ensolarada, no nível do mar onde desemboca. Ambas, porém, encerram o espírito alegre e colorido do colombiano. Não há mais que dedicar maiores atenções à alardeada insegurança da Colômbia, tristemente associada ao terror do narcotráfico. Por mais que o atual estado das coisas seja de segurança ostensiva e imposta - como o olhar mais desavisado pode captar nas ruas de Bogotá, vigiadas pela guarda e pelo exército -, a imagem antes divulgada, se nunca foi a real, hoje nem mais se sustenta. Disso me ficou somente a cena de um soldado de capuz e fuzil, como que adormecido numa rua escura e deserta do bairro bogotano de La Candelaria. Mas o que realmente cultivo de minha experiência colombiana - um rico café, uma interessante gastronomia, a simplicidade das pessoas - compartilho assim com os leitores destes entremeios:

       
1. Pátio do Museo Botero, em Bogotá. Fernando Botero é um conhecido artista colombiano, em cuja memória o Banco Nacional mantém um belo e rico museu no bairro de La Candelaria. Botero é bastante característico pela forma das suas esculturas e pinturas, retratando pessoas e animais de corpo avantajado. Uma experiência inolvidable. Nas fotos, o bonito pátio do Museo e alguns exemplos da arte de Botero. 
2. Andrés D.C., em Bogotá. Um restaurante-bar-"casa de show" (ou algo que lembre tudo isso) que é uma instituição colombiana. Mais conhecido é o Andrés Carne-de-Rés, que fica numa cidade fora, mas perto, de Bogotá; visitamos, porém, o Andrés D.C., mais recente, com seu prédio de vários andares. O caráter desse lugar reside na decoração inovadora (com uma multiplicidade de objetos e combinações), na inacreditável variedade do cardápio - entre pratos, petiscos e drinks -, nas pequenas cenas praticadas em cada mesa, no clima alegre e descontraído. O tamanho é incogitável antes de chegar lá. Fica num bairro nobre de Bogotá, que até lembra bairro carioca do Leblon (sem nenhuma maldade na comparação).
 
3. Ruas, praças e sossego de Cartagena de Índias. Andar e andar: eis o encanto de Cartagena, uma cidade que já foi um forte, preservando hoje um distinto centro histórico, que concentra a vida íntima da cidade entre as muralhas. Depois da caminhada, o aconchego de um dos elegantes hotéis boutique (como o La Merced) de onde se veem os telhados e o mar...
 4. Bares e restaurantes de Cartagena de Índias. Cartagena é bem gastronômica (simples e saborosa), apesar de abrigar alguns restaurantes com muito mais fama do que méritos (caso do El Santísimo, na minha opinião). Apreciei o La Vitrola - reduto de Gabriel García Márquez - e o La Cevichería (não é exatamente um restaurante, e sim um lugar muito mal-arrumado que ficou famoso por causa de uma referência de Anthony Bourdain; mas nem por isso deixa de ser bom). Roberta, fiel à sua verve de estusiasta da cozinha italiana, citaria também o Enoteca. Entre os bares há o Café del Mar, para um elegante happy-hour num dos extremos das muralhas.  
Gabriel García Márquez, já que falei dele, tem uma casa em Cartagena; não vive mais lá, no entanto. "Cuando vuelve viene acá", diz, orgulhoso, o simpático garçon do La Vitrola, que se parece com Gabo.  

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Viagens de Cecília Meireles

Revisitando as Crônicas de viagem de Cecília Meireles, selecionei alguns entremeios para este início de semana. Os textos citados foram escritos em 1953 (o último em 1954). 
- Sobre o turista: 
"Quanto mais viajo, mais me torno antiturística. Como pode a bela Itália ter sossego com estas ondas e ondas de forasteiros que a atravessam de ponta a ponta, como formigueiros em mudança? É verdade que, indústria tão bem organizada, em país de tanta abundância artística e tanta variedade de paisagens e costumes, só pode dar este resultado que vemos. E fico triste ao pensar que turistas são como essas pessoas que querem visitar à força uma celebridade qualquer e, quando o conseguem, não adianta nada - não a entendem suficientemente para justificarem a perda de tempo que lhe causaram, ou a pequena perturbação do ritmo de sua vida. 
Mas os turistas aumentam todos os dias. E a primavera já vem, cheia de jacintos e violetas. (Há qualquer coisa errada, neste mundo...)". 
- Paris: 
"Dos museus, não se pode falar, porque seria fazer catálogos de obras-primas. Infelizmente, os bandos turísticos que desfilam em passo de ganso pelas salas e pelos corredores perturbam todo o efeito de cada quadro, - que é assunto de contemplação, e não desprende sem mistério de repente, por mais que se esforce o guia, também já fatigado dos visitantes. 
É uma dor no coração ver que aqueles trágicos lugares por onde Maria Antonieta andou sofrendo são dos mais belos para serem agora visitados, mesmo quando o guarda, com certo ódio, - talvez profissional - dramatize episódios violentos, feroz ainda a outra realeza, testas coroadas, mulheres soberbas e outras maneiras de dizer". 
- Amsterdam: 
"Com esquadros imaginários, com lápis imaginários, pus-me a traçar vagos desenhos nesse fino papel imenso, da noite desdobrada: pontes sobre os séculos, sobre os oceanos, entre as idéias... Meus esquemas afogavam-se na impalpável matéria da noite. Certamente, se dormisse, não teria sonho mais fluido, mais fugitivo, mais deslembrado. 
Pela madrugada, a cidade começou a voltar: delineavam-se as ruas, lá embaixo, muito longe... Ouvi ou imaginei campainhas de invisíveis cavalos, acolchoadas em névoa?"
- Roma: 
"Em qualquer lugar do mundo, uma coleteira é uma senhora que faz coletes. Mas aqui em Roma existe uma que é um espírito do escultora trabalhando com cetins, elásticos, barbatanas e colchetes. Ela não pergunta às freguesas: 'Qual é o seu número?' e tira secamente da prateleira o artigo que lhe pedem. Não, esta não é como as outras. Esta contempla a freguesa de perto, de longe, de frente, de lado, abre os braços, fala de museus, desenha no ar perfis de sílfides, e sua linguagem é tão aérea, transparente, lunar, que antes de comprar o espartilho a candidata já se sente reduzida às dimensões a que se destinam aqueles aparelhos. Quando, porém, tal redução é visivelmente impossível, - coisa fácil de acontecer não só a quem mora na Itália, mas até a quem por lá passa, dada a generosidade das massas e dos vinhos, - então é que a escultora se revela insigne psicóloga. Discorre sobre a solidez da beleza clássica, planta-se na sua loja como um mármore num robusto pedestal, declama com inspiração clássica o elogio dos deuses triunfais e convence a interlocutora, um pouco humilhada com o seu peso, de que a beleza feminina é essencialmente exuberante. (A julgar pela intensidade da sua representação, quase poderia dizer - essencialmente calipígia)". 


- E esta última, sobre a Índia, vai para a minha querida amiga Tércia:
"Como vai o Ocidente compreender essa grandeza do despojamento indiano, da sua não-violência, da sua moderação - quando a máquina inventou uma velocidade inumana, e já ninguém pode parar para refletir, para estudar, para penetrar séculos, idiomas, filosofias, - se todos querem viver imediatamente, confortavelmente, a serviço do corpo e da hora? 
Ponho-me a pensar no que deve ser a sabedoria. E como praticá-la. E tudo é longe, terrivelmente longe: não há convênios, conferências, congressos que transformem o homem de egoísta em generoso, de violento em pacífico, de cruel em manso, de cego em lúcido... O processo de edificação humana é lento, devia ser unânime, constante...
Como somos cada vez em um mundo menor, mais próximo, unido no mesmo destino terreno, devíamos acertar a nossa marcha numa certa direção e com um certo ritmo. Entre a vida e a morte - esse espaço tão curto - devíamos ser melhores do que temos sido e estamos sendo". 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Musas do Palau de la Musica Catalana

Em março de 2010 fui conferir uma apresentação da banda de jazz do cineasta Woody Allen no Palau de la Musica Catalana, em Barcelona. Meu deslumbramento, entretanto, foi com a arquitetura irresistível do lugar.  
Fotografei então esse maravilhoso mosaico (com esculturas em relevo) em um dos semicírculos da sala de conciertos. Em todo o semicírculo, que fica debaixo do órgão, veem-se dezoito esculturas de musas modernistas saindo de um lindo mosaico chamado trencadís - aquele tão utilizado por Antoni Gaudí, o famoso arquiteto catalão. Na minha fotografia se encontram sete dessas musas, e creio ter apreendido um rico cenário noturno, com interessantes realces de sombra e de luz. Percebam os leitores que as musas (as esculturas brancas) estão em relevo a partir da cintura e como que dançam desenhadas no mosaico, cada qual portando um instrumento musical. As esculturas são de Eusebi Arnau; os mosaicos, de Mario Maragliano e Lluís Bru. Contempla-se melhor a foto em seu tamanho real, conseguido com um "click". 
Acima desse semicírculo, no canto esquerdo da sala de concertos, há um busto de Josep Anselm Clavé, poeta, compositor e diretor de música catalão. São dele os versos com que termino este post, da obra Els Flors de Maig (1858):  
“Sob um salgueiro sentada, uma moça
trança alegre seus lindos cabelos de ouro...
é seu olhar fresca fonte cristalina,
violetas do bosque a adornam...” 
(Tradução de Sérgio Rebouças) 

Convicção Enófila

Disse o Marquês de Sade, em insuperável imagem: 
"A conversa, como certas partes da anatomia feminina, sempre corre melhor quando é lubrificada..."

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Trânsito Musical

Para que os leitores se apercebam e formem uma ideia do tempo médio que muitos de nós levamos em um dia de trânsito, aviso-lhes que hoje, por exemplo, deu para ouvir inteiramente o Birth of the Cool, de Miles Davis, com duração total de cerca de 37 minutos. 
Esse disco foi gravado quase dez anos antes do Kind of Blue, quer dizer, entre 1949 e 1950. A vocação precursora de Davis está também aí: como o nome do álbum sugere, forma-se o chamado cool jazz, tão fecundo e prolífico nos anos que se seguiram. O disco significa, sob outro prisma, um notável aperfeiçoamento do bebop, embora seja com frequência referido como reação a esse último estilo; reação, isso sim, a uma forma virtuosística e purista do bebop. Claro que o cool jazz difere do bebop por uma evidente questão de velocidade: o cool é uma música mais suave, mais lenta, mais leve; harmonicamente, porém, preserva as mesmas bases do bebop e é por isso que o considero um dos muitos aperfeiçoamentos que surgiram desse nicho que dominou os anos 1930. O próprio Davis, não se pode esquecer, gestou-se musicalmente no bop
A característica singular do disco pode ser identificada nas influências da música clássica, mas sobretudo na criatividade dos arranjos e na excelente e inovadora interpretação do noneto de Davis. Isso é jazz sofisticado. Destaco Gerry Mulligan (sax barítono) e o grande John Lewis (piano), notáveis arranjadores que estão na essência desse álbum, assim como Gil Evans, com seus ricos arranjos para, por exemplo, Moon dreams e Boplicity. Há também que referir os vocais de Dizzy Gillespie e Kenny Haggod, que faz uma bela interpretação em Darn that dream
Miles Davis, claro, tem o grande mérito da percepção visionária e da capacidade de agregar e integrar talentos individuais (o exemplo mais bem sucedido disso é Kind of Blue), além da interpretação sempre superior. Por essa razão, não pode ser desmerecido o crédito que se lhe dá, apesar das injustiças representadas pelo correlato esquecimento de arranjadores e intérpretes do nível de Mulligan e Lewis. Aliás, John Lewis depois formaria um excelente quinteto de cool jazz, com menos referências na história do jazz do que as merecidas.       
Finalizo oferecendo aos leitores Boplicity, um entremeio de Birth of the cool

5 Vinhos Argentinos

Este post vai para o leitor que, a um bom custo-benefício, quer experimentar dos melhores vinhos argentinos - na opinião do editor deste entremeio, claro, segundo uma experiência muito pessoal, sem vinculação com qualquer análise pretensamente especializada:
1. J. Alberto Malbec 2008. J. Alberto é o nome do vinho; a região, Vale del Río Negro, na Patagônia argentina; o produtor, a refinada Bodega Noemía (que faz o - mais simples - A. Lisa). Perfeito para compartilhar entre amigos; muito elegante e com bom corpo, oferecendo traços de marcada distinção. Os vinhos da Patagônia argentina realmente merecem mais atenção. Esse vinho, se comprado em Buenos Aires, sai a um preço incrível. Aqui em Fortaleza se pode encontrar o A. Lisa, também da Noemía, mas não é a mesma coisa do J. Alberto. 
2. Luca Pinot Noir 2008. Também um vinho da Patagônia, só que da sub-região do Vale del Uco. Vinho frutado, para quem gosta do estilo da uva pinot noir, assemelhando-se aos vinhos da Bourgogne francesa (e distanciando-se dos de Bordeaux), com menos corpo, mais leveza e mais maciez, portanto. Grande produtor de um raro pinot noir sul-americano. 
3. Saint Felicien Cabernet-Merlot 2007. Vinho produzido pela prestigiada Catena Zapata, da região de Mendoza. Tenho uma relação muito pessoal com ele, pois uma história de amor se escreveu sob os seus auspícios, nas luzes do restaurante El Mercado, do Faena, o famoso hotel portenho. Vinho simples, rico e encorpado. O preço é bom, e não tem erro. 
4. DV Catena Malbec 2003 Nicasia Vineyard. Vinho produzido em San Carlos, na região de Mendoza. As vinícolas Nicasia produzem vinhos magníficos, tanto quanto - na minha opinião - os da mais famosa Angelica Zapata, do mesmo produtor. Veja bem: não se trata de qualquer DV Catena, e sim daquele dos vinhedos de Nicasia, o que faz toda a diferença. 
5. Catena Zapata Malbec Argentino. Esse é o mais caro da lista, embora assim mesmo com um custo-benefício extraordinário. Vinho encorpado e fácil de beber, revelando uma produção muito cuidadosa e destinada a paladares exigentes. Só não é o melhor vinho da Argentina...
A foto ilustra a região vinícola da Patagônia.     

sábado, 14 de janeiro de 2012

Azeites da Espanha

A Espanha é o maior produtor de azeite do mundo (mais de 40% da produção mundial), seguida por Itália e Grécia. A Comunidade Autônoma da Andaluzia, por sua vez, responde por 80% da produção olivareira espanhola, abrigando 61% das oliveiras daquele país (as principais províncias produtoras são as de Jaén e de Córdoba). A Espanha conta atualmente com 27 denominaciones de origen, isto é, regiões demarcadas, regulamentadas e protegidas de produção de azeite, das quais 14 são andaluzas. Além disso, há mais de 260 variedades de azeitonas (!), sendo mais conhecidas a pictual, a hojiblanca, a lechín, a arbequina, a verdial e a picuda. O azeite espanhol, apesar de tudo, é ainda pouco difundido no Brasil, considerando a grande variedade espanhola de regiões e de azeitonas, e os diferentes óleos que daí se produzem. 
A título de referência ao leitor interessado nesse rico e barato prazer gastronômico, apresento 4 descobertas de azeites da Andaluzia: 
1. Aceite NUÑEZ DE PRADO: Azeite da região demarcada D.O. de Baena,  correspondente, no mapa que abre este post, ao número 17.  Essa denominação de origem se insere nos limites da província de Córdoba. Trata-se de um óleo obtido de frutos selecionados nos olivais de 700 hectares de propriedade, por um método idealizado pelo  Marqués de Acapulco y Villanueva no início do século XX, que consiste em extrair a “flor del aceite” de uma pequena quantidade de sumo de azeitona, através de um simples filtro (elaboração tradicional e artesanal). O cultivo é orgânico, sem uso de fertilizantes nem pesticidas artificiais. Azeite de aroma frutado, com um final amargo e ligeiramente picante. 
2. Aceite FUENROBLE: Azeite do destacado produtor POTOSÍ 10 e inserido na D.O. de Sierra Segura (número 16 no mapa), província de Jaén. Já foi premiado como o melhor azeite da Espanha. A única azeitona utilizada é a pictual, que aqui adquire um caráter muito elegante. Um azeite delicioso e diferente. 
3. Aceite CORTIJO DE LENTISCO: Também de azeitona pictual, esse é o azeite que conheço há mais tempo. Pertence à D.O. Poniente de Granada (número 25 no mapa), província de Granada. Produzido pela Agricosum, esse óleo tem muito corpo e aroma. 
4. Aceite OLEO CARZORLA: Como o nome sugere, essa marca inclui-se na D.O. Sierra de Cazorla (número 21 no mapa), província de Jaén. O produtor é a Aceites la Casería de Santa Julia. Esse azeite tem cor dourado-esverdeada - assim como muitos outros de Jaén -, com um sabor frutado e picante. 
Dos quatro, sem dúvida o Fuenroble é o mais marcante (como denuncia a quantidade de líquido na garrafa da foto...). Todos são ideais para consumir em crudo mesmo, com pão, mas se prestam também para refogar, ao contrário do que acontece com os azeites da azeitona lechín, por exemplo, que normalmente não se comportam bem no calor. A propósito, é um mito dizer que azeite para cozinhar pode ser qualquer um. Nada mais falso. Um molho de tomate, por exemplo, por certo levará o sabor peculiar do azeite empregado no sofritto (refogado inicial). Digo-o por experimentos próprios. 
Alem disso, quem gosta de gazpacho (uma sopa fria andaluza) pode fazer um ótimo com qualquer dos óleos indicados. Outro bom emprego desses ricos azeites pode ser em um batutto como o o pesto italiano, com alho, manjericão, pinhões/pignoli (ou outra amêndoa), queijo pecorino e/ou parmesão. Aqui, aliás, funciona bem um belo azeite toscano, como o Frantoio Franci, de Grosseto; mas isso é tema para outra conversa.        

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Jorge Luis Borges, o Entremeio e a Memória

Nesta quinta-feira apresento aos meus leitores duas passagens do maior ficcionista do Século XX, o argentino Jorge Luis Borges. 


A primeira delas, tirada do ensaio La muralla y los libros,  da obra Otras inquisiciones, expressa bem a noção do entremeio estético que anima as nossas reflexões neste Blog: 
“La música, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético”. (Jorge Luis Borges, La muralla y los libros, Otras inquisiciones).  
"A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não poderíamos ter perdido, ou estão por nos dizer algo; esta iminência de uma revelação, que não se produz, é, talvez, o fato estético". (Tradução de Sérgio Rebouças).


A segunda passagem, agora a respeito da memória estética, pertence a outro ensaio de Otras inquisiciones, chamado Sobre los clásicos
“Las emociones que la literatura suscita son quizá eternas, pero los medios deben constantemente variar, siquiera de un modo levísimo, para no perder su virtud. Se gastan a medida que los reconoce el lector. De ahí el peligro de afirmar que existen obras clásicas y que lo serán para siempre.
[...]
Clásico no es un libro (lo repito) que necesariamente posee tales o cuales méritos; es un libro que las generaciones de los hombres, urgidas por diversas razones, leen con previo fervor y con una misteriosa lealtad”. (Jorge Luis Borges, Sobre los clásicos, Otras inquisiciones).    
"As emoções que a literatura suscita são talvez eternas, mas os meios devem constantemente variar, ao menos de um modo levíssimo, para não perderem sua virtude. Eles se gastam à medida que os reconhece o leitor. Daí o perigo de afirmar que existem obras clássicas e que o serão para sempre. 
[...] 
Clássico não é um livro (repito) que necessariamente possui tais ou quais méritos; é um livro que as gerações dos homens, impelidas por diversas razões, leem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade." (Tradução de Sérgio Rebouças).

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Gastrobotânica do Rodrigo de la Calle: Cocinar es un acto de amor

Aranjuez é uma pequena cidade localizada na província de Madrid, a cerca de 50 Km da capital. Conhecida por seus aspargos e morangos, Aranjuez firma-se como um destacado sítio gastronômico para o viajante. Ali encontramos o Rodrigo de la Calle, restaurante que inova com o conceito de gastrobotânica, em que se cultiva a pesquisa e a utilização de uma incrível quantidade de vegetais - inclusive flores - na culinária, aproveitando a riqueza botânica do local; sem prejuízo, é claro, das muitas bases de peixes e frutos do mar que entram na simbiose com as verduras e cogumelos do deserto. Tudo isso aliado a um serviço atento e elegante. Aqui vão dois exemplos do estilo do Rodrigo de la Calle (sem esquecermos das saborosas e variadas azeitonas servidas como aperitivo): 
- Ensalada de tomates Huerto de Elche: nada menos que 5 tipos de tomate (morado de Aranjuez, rojo mexicano, morado de Ibiza, enano de Aranjuez, tomatillas mexicanas), folhas e flores de tomateiro, salmorejo (uma emulsão com azeite e alho) de tomate verde e de tomate vermelho, além de água de tomate geleificada. O resultado está na foto. 
- Esturión con espárragos y manzana verde: um pescado fresco delicioso com aspargos de Aranjuez e um surpreendente molho de maçã verde. 
Enfim, em cada prato está refletida a mensagem do Rodrigo de la Calle: cocinar es un acto de amor... 
Na foto de abertura, um entremeio de Aranjuez.    

A Alegria!

Em homenagem à Alegria que me toma desde ontem, cito o trecho final de As margens da alegria, das Primeiras estórias de João Guimarães Rosa: 
“Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! – tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria”.

Nasce em mim um encanto inefável... 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Vinhos de Montilla-Moriles

A cidade espanhola de Montilla fica no sul da província de Córdoba, inserida na comunidade autônoma da Andaluzia. É a sede da denominación de origen de Montilla-Moriles, região demarcada que abriga a produção de vinhos principalmente da uva branca Pedro Ximénez. A produção dessa zona volta-se com predominância ao mercado interno - 83% das garrafas ficam na Espanha. Os vinhos de Montilla-Moriles são assemelhados aos - mais famosos - de Jerez, empregando-se o mesmo método de solera, em que o vinho passa por um peculiar envelhecimento de 2 anos em barris (as soleras). Em Jerez, entretanto, há uma adição artificial de certo teor alcoólico, ao passo que em Montilla todo o álcool é natural, oriundo da fermentação. Trata-se de vinhos bem alcoólicos, a propósito, mas de uma finesse irresistível. O terroir de Montilla-Moriles inclui solos calcáreos e clima "mais quente" que o de Jerez; daí a melhor adaptação da uva Pedro Ximénez, ao invés da Palomino, utilizada na região "rival" (a denominación de origen Jerez-Manzanilla de Sanlúcar de Barrameda fica na província, também andaluza, de Cádiz).  
Visitei, na cidade de Montilla, a bodega Pérez Barquero, um destacado produtor, degustando - como mostra a foto - os diversos tipos de vinho, com classificação similar à de Jerez: 
a) Blanco jóven: vinho frutado, para consumo rápido; 
b) Fino (Gran Barquero Fino PX): o meu preferido, embora não apeteça a alguns paladares, como o da Roberta e o da Tércia; de qualquer forma, é menos seco que o seu correspondente de Jerez, com aromas salinos e muito requintado. Esse vinho se produz pelo procedimento de velo en flor (véu em flor), genuinamente um "véu" que se forma na fermentação dentro dos barris de solera, superpostos numa área totalmente protegida da oxidação; a flor do vinho é obtida nesse processo. Impressionou-me o extremo cuidado da bodega Pérez Barquero na produção; há todo um galpão protegido, com vários barris guardando o vinho do futuro. Ah, aqui são 15% de teor alcoólico. As fotos abaixo ilustram o lugar e um entremeio do método de produção:  
c) Oloroso (Gran Barquero OL PX): aqui já há alguma oxidação e bem mais álcool que o anterior (19%). Vinho mais escuro e "mais doce" que o fino.   
d) Amontillado (Gran Barquero AM PX): cor e aspecto parecidos aos do oroloso (e os mesmos 19% de álcool), só que um pouco "mais doce" e com um certo gosto de ferrugem. Ótimo vinho.
e) Pedro Ximénez (Gran Barquero Pedro Ximénez): este é um vinho generoso e doce, para tomar como aperitivo ou em sobremesa. Uma bebida deliciosa, com 15% de teor alcoólico. Parece-me ligeiramente menos doce e mais rústico que um Pedro Ximénez de Jerez, como o de Fernando de Castilla, que guardo na minha adega e é muito bom.   
Rica experiência a de conhecer melhor esses vinhos de Montilla-Moriles, que levam em seu sabor o cuidado da tradição e a simplicidade da terra.      

domingo, 8 de janeiro de 2012

Katherine Mansfield e a Infância

Há um tempo li o conto da neozelandesa Katherine Mansfield chamado The Doll's House (A Casa de Bonecas), que fecha a "trilogia da infância" concebida por aquela autora do início do século XX. Esse conto é de uma sensibilidade tão marcada, de uma delicadeza tão ímpar e de traços estilísticos tão sedutores, que entrei numa espécie de transe ao terminá-lo, com lágrimas já quase despontando; revisito-o sempre, entre intencionais distâncias, com o mesmo encanto da primeira vez. Dos contos de Mansfield guardo uma edição da Oxford e outra da CosacNaify, esta em caprichada tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Alexandre Barbosa de Souza. Ofereço aos meus leitores entremeios de The Doll's House, no original e no vernáculo:


"‘Why not?’ asked Kezia.

Lil gasped, then she said, ‘Your ma told our ma you wasn’t to speak to us’.

‘Oh, well,’ said Kezia. She didn’t know what to reply. ‘It doesn’t matter. You can come and see our doll’s house all the same. Come on. Nobody’s looking.’

But Lil shook her head still harder.

‘Don’t you want to?’ asked Kezia.

Suddenly there was a twitch, a tug at Lil’s skirt. She turned round. Our Else was looking at her with big imploring eyes; she was frowning; she wanted to go.’
[...]
Presently our Else nudged up close to her sister. By now she had forgotten the cross lady. She put out a finger and stroked her sister’s quill; she smiled her rare smile.
‘I seen the little lamp,’ she said, softly.
The both were silent once more.” 

"'Por que não?', perguntou Kezia. 
Lil respirou fundo e disse em seguida: 'Sua mãe disse para nossa mãe que você não deve falar com a gente'.  
'Ah, bem', disse Kezia. Não sabia que resposta deveria dar. 'Isso não tem importância. Mesmo assim vocês podem entrar e dar uma espiada em nossa casa de boneca. Venham. Ninguém está olhando.'
Mas Lil balançou a cabeça ainda com vigor. 
'Então vocês não querem?', perguntou Kezia. 
De repente Lil sentiu que alguém puxava sua saia. Ela voltou-se. A nossa Else a encarava com aqueles seus olhos enormes e quase implorava; ela queria ir.
[...] 
Então a nossa Else aproximou-se e ficou bem junto de sua irmã. Mas agora já havia se esquecido daquela senhora brava. Esticou um dedo e deslizou-o pelo chapéu da irmã; sorriu seu raro sorriso. 
'Eu vi a lampadinha', ela disse, suavemente. 
Então ficaram em silêncio outra vez."  

sábado, 7 de janeiro de 2012

Tsonga vence o ATP de Doha

O tenista francês Jo-Wilfried Tsonga acaba de vencer, por 75 63, o jogo contra seu compatriota Gael Monfils, conquistando assim o ATP 250 de Doha, no Qatar. Esse torneio teve como principais cabeças-de-chave Rafael Nadal e Roger Federer. Monfils passou à final após uma contundente atuação contra Nadal, ao passo que Tsonga, com mais sorte, contou com a desistência (antes do jogo) de Federer. Contra Tsonga, porém, Monfils não repetiu o nível e volume de jogo mostrados frente a Nadal. 
Tsonga, portanto, vai confirmando a realidade para que já se acenou em outra postagem deste blog: afirma-se como uma das grandes promessas para o próximo Australian Open, Grand Slam do qual, aliás, já foi vice-campeão, em 2008. 
Vamos então à próxima semana, com os últimos torneios ATP 250 preparatórios para o Australian Open: Auckland (Nova Zelândia) e Sidney (Austrália); no primeiro jogará o brasileiro Tomaz Belucci, como cabeça-de-chave 8.   

Saramago e o Amor

Algum dia em algum aeroporto adquiri e li Palavras de Saramago, uma edição de Fernando Gómez Aguillera, o biógrafo espanhol de José Saramago. Trata-se da reunião de trechos de entrevistas do escritor português, organizada por temas. Guardei um entremeio sobre o amor, que agora compartilho com os meus leitores:
“Penso saber que o amor não tem nada que ver com a idade, como acontece com qualquer outro sentimento. Quando se fala de uma época a que se chamaria descoberta do amor, eu penso que essa é uma maneira redutora de ver as relações entre as pessoas vivas. O que acontece é que há toda uma história nem sempre feliz do amor que faz que seja entendido que o amor numa certa idade seja natural, e que noutra idade extrema poderia ser ridículo. Isso é uma ideia que ofende a disponibilidade de entrega de uma pessoa a outra, que é em que consiste o amor.
Eu não digo isto por ter a minha idade e a relação de amor que vivo. Aprendi que o sentimento do amor não é mais nem menos forte conforme as idades, o amor é uma possibilidade de uma vida inteira, e se acontece, há que recebê-lo. Normalmente, quem tem ideias que não vão neste sentido, e que tendem a menosprezar o amor como fator de realização total e pessoal, são aqueles que não tiveram o privilégio de vivê-lo, aqueles a quem não aconteceu esse mistério.”   

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Mondovino e a Disputa do Gosto

Ontem à noite vi o excelente documentário Mondovino, de Jonathan Nossiter. Por diversos entremeios principalmente na França, na Itália e nos Estados Unidos, mostram-se os conflitos entre tradição e modernidade no mundo do vinho, em especial o efeito globalizador patrocinado por grandes empresas norte-americanas (representadas pela famosa californiana Mondavi) no "Velho Mundo". Mondovino elucida, por métodos e efeitos notáveis, uma questão muito corrente da contemporaneidade: a manipulação e a padronização do gosto. De forma sutil, o diretor conduz as divergências em torno do complexo mercado do vinho, dando voz a todos os lados. O ponto mais marcante, para mim, é como a estandardização do sabor resulta imposta por poucos enólogos e críticos - concentrados nas figuras de Michel Rolland e Robert Parker -, à custa de terroirs manipulados para atender aos modelos do vinho "fácil de beber". O vinho então vai ficando cada vez mais uniforme, seja produzido no terroir de Bordeaux, seja no da Toscana, seja no do Napa Valley californiano (com suas "corretoras" barricas de carvalho). O bordalês Michel Rolland, em particular, o enólogo mais influente do mundo, presta consultoria a produtores de 12 países, nos quais realiza suas adaptações de "micro-oxigenação", homogeneizando o vinho em função de um modelo de gosto que o torne mais vendável; e o faz com surpreendente eficiência. Do seu amigo mais famoso, o crítico Robert Parker, então, nem se fala; os preços dos vinhos dependem dele. Em nome disso é que se deram as associações, reveladas no documentário, entre tradicionais famílias aristocráticas - Mouton-Rothschild, por exemplo - e as potências norte-americanas, como a Mondavi. Destaco ao leitor interessado alguns momentos especiais: 
1. A "discussão" à distância, potencializada pela edição do filme, entre o enólogo Michel Rolland e o irônico Aimé Guibert, produtor enciumado do Languedoc-Roussillon (França), onde o pequeno vilarejo de Aniane resistiu e impediu a penetração do grupo Mondavi, chegando para tanto ao "cúmulo" de eleger um prefeito comunista. Trechos desse "diálogo": 
Rolland: - É preciso micro-oxigenar. O objetivo é muito simples. Fazer cada vez melhor. Não há nenhuma dúvida. Se não der para melhorar, é melhor não fazer nada. 
Diretor: - Mas nem todos concordam sobre como fazer bem um vinho. 
Rolland: - Claro, a diversidade é isso. É por isso, aliás, que há tantos vinhos ruins... (risos)
[...]
Guibert: Há uma relação quase religiosa do homem com os elementos naturais. Com a terra, claro, viva, sem moléculas sintéticas. E com o clima. Estamos diante de algo que parece com o culto ao dinheiro. Um grande vinho é a soma de muito amor e de muita humildade. Um elo profundo com a terra, o tempo, o clima. Fazer vinho é ofício de poetas. Os poetas foram agora substituídos por enólogos. Sedutores e sorridentes. Como M. Rolland. É fascinante. Ele chega em uma conferência e diz: 'É possível fazer um grande vinho em qualquer lugar do mundo. Basta... consultar M. Rolland!".
2. É interessante o comentário do aristocrata e diretor de vinhos da Christie's britânica acerca dos métodos de Rolland. Um vinho de Margaux - denominação de origem do âmbito de Bordeaux - não estava vendendo bem, mas, após a contratação de Rolland, foram feitas adaptações que, adequando o produto ao gosto padrão, movimentaram o mercado; a contrapartida disso é que o vinho deixou de ser um Margaux, vale dizer, perdeu sua identidade.
3. As fraudes relatadas são assustadoras. O mesmo vinho engarrafado com diversos rótulos em uma grande propriedade (a terceira da França em vendas) da Bourgogne. Produtores que adulteram vinhos, que não correspondem ao que está dito no rótulo, para agradar ao gosto de Robert Parker e assim se inserirem no famoso "Parker's Guide". Esses vinhos, caros leitores enófilos, chegam até nós. 
4. As reflexões do produtor borgonhês de Volnay, Hubert de Montille (a foto na capa do documentário é dele), estão entre os grandes momentos da produção. 
Bem, acabei não resistindo a escrever muito. Recomendo o documentário não apenas para os entusiastas do vinho - em especial aos preocupados com as notas da Wine Spectator e de Robert Parker -, mas a todos que entendem que as reduções mercadológicas impostas à arte (porque isso acontece na música, na literatura, no cinema, na pintura etc.) devem ser pensadas para além da ideia simplória da oposição ao "progresso tecnológico"; porque modernidade e tradição podem conviver, mas havemos que nos livrar da estupidez, do reducionismo intelectual e do mau-gosto, ou do império de um gosto único, que anule a nossa capacidade de escolha.       

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Agualusa e a Voz de Deus

Ofereço aos leitores um belo entremeio do ótimo O Vendedor de Passados (editado no Brasil pela Gryphus), do escritor angolano José Eduardo Agualusa: 

“O rio, deitado aos pés da floresta, tinha finalmente adormecido. Continuei sentado ali, muito tempo, com a certeza de que se me esforçasse, se ficasse inteiramente imóvel, desperto, se me tocasse a alma, eu sei lá!, de certa maneira o fulgor das estrelas, conseguiria escutar a voz de Deus. E então comecei realmente a ouvi-la, e era rouca e chiava como uma chaleira ao lume. Esforçava-me por entender o que dizia quando vi emergir das sombras, mesmo à minha frente, um perdigueiro magro, com um pequeno rádio, desses de bolso, preso ao pescoço. O aparelho estava mal sintonizado. Uma voz de homem, profunda, subterrânea, lutava com dificuldade contra o tumulto eléctrico:
- O pior pecado é não amar – disse Deus, a voz macia de um cantor de tango..."

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

André Gide, o "homicídio sem motivo" e o belo Tratado do Narciso

Já quis provocar um debate entre meus passados alunos de Direito Penal a respeito da imaginária figura do "homicídio sem motivo". Ocorreu-me que o debate jurídico tradicional parte do pressuposto falso de que tal figura possa existir. Na doutrina jurídico-penal, discute-se o tratamento normativo que se deve conferir à ausência de motivo no crime de homicídio: a) se é caso de homicídio qualificado, pela equiparação da ausência de motivo ao motivo fútil (motivo banal, sem importância); b) ou se é caso de homicídio simples, por não estar a ausência de motivo prevista em lei como circunstância de qualificação do crime. Ora, mas esse debate só tem sentido se realmente existir o tal do homicídio sem motivo. Mas toda ação humana - ação entendida como exteriorização de vontade, que é a única com interesse jurídico-penal - se vincula a uma motivação; fora disso estamos no plano dos atos reflexos, que não chegam a constituir conduta juridicamente relevante. 
O leitor já estará se perguntando que tem isso a ver com o André Gide referido no título e mostrado na foto desta postagem. É que Gide, notável escritor francês do início do Século XX, escreveu um romance chamado Les Caves du Vatican (Os Subterrâneos do Vaticano) em que um sujeito, objetivando cometer um "ato gratuito" que ponha a Polícia em situação de embaraço, resolve empurrar outro de um trem, com o que pratica um pretenso "homicídio sem motivo". Para isso, o agente se coloca em elucubrações mentais a respeito de possível doença padecida pela vítima. Ora, mas nem aí se pode identificar conduta imotivada: o sujeito matou motivado pelo objetivo de embaraçar a Polícia ante uma imaginária situação de ausência de motivo. Aí está. Outro exemplo literário que pode conduzir ao mesmo debate é a situação dramática de L'Étranger, do argelino Albert Camus.
Assim postas as coisas, o tratamento jurídico a se emprestar ao assunto não sai do âmbito meramente probatório: quer dizer, se não se consegue provar o motivo, claro, o caso é de homicídio simples. Não quer isso dizer que o motivo não exista; existirá sempre em qualquer ação de interesse para o Direito Penal (o ato reflexo, não sendo ação, impede a própria imputação do homicídio). 
Mas esse post nem se destinava a tratar disso. Para ultrapassarmos a aridez desse debate filosófico, cito um trecho genial, mais artístico do que fenomenológico, do Traité du Narcisse (Tratado do Narciso) de André Gide, para deleite dos leitores (vai no original e em tradução livre minha):


"Les livres ne sont peut-être pas une chose bien nécessaire; quelques mythes d’abord suffisaient; une religion y tenait tout entière. Le peuple s’étonnait à l’apparence des fables et sans comprendre il adorait ; les prêtres attentifs, penchés sur la profondeur des images, pénétrait lentement l’intime sens du hiéroglyphe. Puis on a voulu expliquer ; les livres ont amplifié les mythes ; - mais quelques mythes suffisaient.
Ainsi le mythe du Narcisse : Narcisse était parfaitement beau, - et c’est pourquoi il était chaste ; il dédaignait les Nymphes – parce qu’il était amoureux de lui même. Aucun souffle ne troublait la source, où, tranquille et penché, tout le jours il contemplait son image... – Vous savez l’histoire. Pourtant nous la dirons encore. Toutes choses sont dites déjà ; mais comme personne n’écoute, il faut toujours recommencer."


"Os livros talvez não sejam bem uma coisa necessária; alguns mitos antigamente bastavam; uma religião os abarcava por inteiro. O povo se admirava com a aparência das fábulas e sem compreender as adorava; os padres atentos, debruçados sobre a profundidade das imagens, penetravam lentamente o íntimo sentido do hieróglifo. Depois quiseram explicar; os livros amplificaram os mitos; - mas alguns mitos já bastavam.
Assim o mito do Narciso: Narciso era perfeitamente belo; - e por isso era casto; desdenhava as Ninfas – porque era apaixonado por si mesmo. Nenhum sopro lhe turbava o estado em que, tranqüilo e reclinado, por todo o dia ele contemplava sua imagem... – Você sabe a história. Entretanto nós a diremos novamente. Todas as coisas já estão ditas; mas como ninguém escuta, é preciso sempre recomeçar." (tradução de Sérgio Rebouças)   

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Chet Baker and Bill Evans Legendary Sessions

Ouvi o Chet Baker and Bill Evans The Complete Legendary Sessions, lançado em 2010, e li a crítica do jornalista da BBC Michael Quinn. O álbum traz 15 gravações dos dois músicos, acompanhados - de acordo com a faixa - por Herbie Mann (flauta), Pepper Adams (sax barítono), Connie Kay e Philly Joe (percussão) e pelos notáveis Ken Burrell (guitarra) e Paul Chambers (baixo). 
Que dizer? Michael Quinn comenta que, apesar do temperamento parecido e do comum vício em heroína, Bill Evans era mais disciplinado e meticulosamente preciso que Chet Baker, cuja vida conturbada repercutia por vezes numa música errática e inconsistente. Só posso concordar: a produção de Evans é uniformemente primorosa, ao passo que a de Baker se mostra irregular, com avanços e recuos. Evans, de fato, com sua rara disciplina, não deixou que os descaminhos de seu vício interferissem na precisão de sua arte. Por outro lado, os rumos da música de Baker - e muitos dos principais traços que viriam a consagrá-lo - são inseparáveis dos acontecimentos extremos de sua vida. Certo é que, afora isso, estreitam-se Evans e Baker no estilo introspectivo e no lirismo insuperável de suas criações e, especialmente, interpretações. 
Creio já ter deixado suficientemente claro que os dois são meus músicos preferidos de Jazz e, por essa razão, foi com muita expectativa que me pus a conhecer as legendary sessions. O efeito, talvez inevitável, resultou ser de alguma decepção. Isso porque Evans parece muito comedido e se esconde nas várias faixas, muito aquém de seu potencial; ao passo que Baker, como bem identificou Quinn, revela-se por vezes apático. Isso ao ponto de o destaque, em alguns pontos, recair sobre outros músicos: Burnel (em September Song), por exemplo, mas também Adams e Herbie Mann. Mas não podemos esquecer que o grau de exigência decorrente de estarmos falando de Evans e Baker é o que conduz a semelhante avaliação. O álbum, apesar de tudo, tem momentos excelentes, e não pode ser reduzido às "inconsistências" de Baker e às "cautelas" de Evans, embora esse último ponto, para mim, sobressaia. Há instantes de beleza que o talento lírico desses músicos nunca teria deixado passar, ainda que por descuido; como em You'd Be So Nice to Come Home To, If You Could See Mee Now e Tis Autumn. Enfim, não é nem de longe a máxima expressão do talento desses músicos, nem um bom exemplo de entrosamento, mas vale a pena. 

Temporada 2012 de Tênis a todo vapor!


                                                     
                                                              

A temporada de Tênis de 2012 se inicia cedo com os torneios ATP 250 de Brisbane (Austrália), de Chennai (Índia) e o milionário de Doha (no Qatar), grande destaque por contar com Roger Federer e Rafael Nadal como principais cabeças de chave. Esses torneios, disputados em quadra dura, figuram entre os preparatórios para o Australian Open, primeiro Grand Slam do ano. 
O começo de temporada promete muitos desafios e jogos de primeiríssimo nível, especialmente pelos seguintes motivos: 
1. Vemos um novo fôlego de Roger Federer, demonstrado nos títulos consecutivos com que terminou o ano 2011 (difícil para ele), vencendo os torneios ATP 500 da Basiléia, Masters 1000 de Paris (pela primeira vez) e, principalmente, o "torneio dos campeões", isto é, o ATP Finals de Londres, em que não perdeu um jogo sequer. Federer é a minha grande aposta para o Australian Open 2012. 
2. Novak Djokovic, atual número 1, tem muitos pontos a defender para persistir nesse posto, e agora estamos na expectativa de ver se a excelente forma do sérvio resistirá a esse espinhoso desafio. Afinal, em 2011 ele venceu três Grand Slams: Australian Open, Wimbledon e US Open; só aí são muitos pontos a serem defendidos. Além disso, Djokovic venceu os Masters 1000 de Indian Wells, Miami, Madrid, Roma e Montreal; o destaque fica para os dois Masters do saibro (Madrid e Roma), nos quais a hegemonia de Nadal nesse piso resultou marcantemente ameaçada. O esperado desafio de Novak neste ano, porém, é mesmo Roland Garros, único Grand Slam que ele não venceu. Tudo dependerá, claro, da forma de Rafa Nadal, que nas últimas sete edições desse Slam venceu nada menos que seis. Conta-se que o espanhol é praticamente imbatível no saibro em jogos de melhor de 5 sets (caso dos Grand Slams), como os últimos anos vêm sempre confirmando. Na realidade, a performance de Nadal no saibro é um dos acontecimentos mais impressionantes do tênis contemporâneo. Além do desempenho nos torneios ATP, vale citar também que o espanhol nunca perdeu um jogo de Copa Davis disputado na "terra batida". Vamos ver a batalha do saibro entre Nadal e Djokovic, sem esquecermos de Roger Federer, claro, que nesse piso, parece-me, só precisa de um pouco mais de confiança. 
3. Não acredito que Andy Murray ganhe seu almejado primeiro título de Grand Slam (o assunto já é constrangedor e cansativo), mas o britânico sempre constituirá páreo duro, especialmente nos Masters 1000 (em 2011 ganhou dois). 
4. Um aposta minha para 2012: o argentino Juan Martin del Potro, que joga bem em piso rápido e lento e, nesse ano, está voltando à sua boa forma após uma série de contusões, o que acirrará as disputas da temporada. "Delpo", para mim, alcançará o Top 5, mas não creio que vença um Slam. Na verdade, estou convicto de que os 4 principais torneios serão divididos entre Federer, Djokovic e Nadal. Del Potro, de toda forma, mostrou muita força na final da Davis do ano passado ante Ferrer e Nadal, apesar dos reveses. Outra boa aposta para a temporada é o francês Jo-Wilfried Tsonga.  
5. Estamos em ano de Olimpíada (Londres), e o tênis será disputado nas quadras de Wimbledon, o que reforça as chances de Roger Federer. A última grande aspiração do suíço, por certo, é o ouro olímpico em simples. Se estiver em plena forma nesse tempo, ninguém será páreo para ele.
Infelizmente não se pode esperar muito dos brasileiros nessa temporada. A instabilidade de Bellucci não me permite concluir o contrário, e a lamentável separação dos duplistas Marcelo Melo e Bruno Soares - que em 2011 chegaram ao Top 10 - não pode trazer boas expectativas nem para um nem para o outro; aliás, ambos, com outros parceiros, já perderam na primeira rodada de Brisbane. Uma novidade entre nós é que o ATP 250 do Brasil será agora disputado em São Paulo, e não mais na Costa do Sauípe (uma boa política, na minha opinião); também muda o piso, de saibro para quadra dura.
Enfim, vamos aos jogos!