sábado, 1 de setembro de 2012

Cecília

"Eu te murmuro
  Eu te suspiro
  Eu, que soletro
  Teu nome no escuro...

  Me escutas, Cecília? 
  Mas eu te chamava em silêncio
  Na tua presença
  Palavras são brutas...
  
  Pode ser que entreabertos
  Meus lábios de leve
  Tremessem por ti
  Mas nem as sutis melodias
  Merecem, Cecília, teu nome
  Espalhar por aí

  (...) 

  Te olho
  Te guardo
  Te sigo
  Te vejo dormir..."

  (Chico Buarque) 




terça-feira, 17 de julho de 2012

España Gastronómica I: Sevilla

Entremear começa uma série em homenagem à gastronomia espanhola, com a indicação de lugares e sabores de diversas regiões. No entretempo, aproveita-se para recomendar também outros preciosos sítios, alheios ao mundo gastronômico, de algumas cidades.


Há um tempo queria escrever algo sobre as tapas, essa instituição espanhola que é um esplendor de simplicidade criativa e de bem-viver gastronômico. Tapas são algo como "petiscos" ou porções menores de pratos; em verdade, porém, não há um termo em português que traduza fielmente do que se trata. Nos bares de tapas, sem dúvida, é que se experimentam e se reinventam os sabores locais. A cozinha da Espanha, claro, está hoje muy de moda - como se diz ali -, especialmente por conta do valor da gastronomia molecular, que, sobretudo no País Basco e na Catalunha, assumiu formas tão fecundas (o que não a livra de críticas ao exibicionismo e à vaidade dos cozinheiros). De fato, chefes bascos e catalães - com os exemplos expressivos de José María Arzak (basco), Ferran Adrià e Joan Roca (catalães) - animam-se em artimanhas visuais e técnicas incríveis. De todo modo, é no caráter múltiplo da tapa que se encontra a base para as criações, o que realça a singularidade espanhola. Forjou-se então conceito de gastrobar, em que a grande delícia é sentar à barra (ou nem tomar assento) e provar tapas e vinhos  - ou o gin-tonic, também reinventado na Espanha. Pelos bares de tapas das esquinas encontra-se o germe criativo e as surpresas sensoriais, até que desponte mais um dos muitos excelentes cozinheiros daquela terra. Selecionei alguns sítios particulares, entre restaurantes e gastrobares da minha preferência. A seleção se prende a algumas cidades da Espanha e inclui, além das referências, outros lugares para bem comer. Indica-se em destaque o nome da cidade (entre parênteses a província e depois a comunidade autônoma), seguida pelo nome do(s) restaurante(s). Neste post vai o primeiro:  


SEVILLA (Sevilla, Andaluzia)  


Começo por Sevilha, lugar onde há pouco tive residência. Sevilha não representa o maior destaque gastronômico da Andaluzia, comunidade autônoma espanhola de que é capital; as províncias de Málaga e de Cádiz estão mais conectadas à modernidade. Em Sevilha optou-se pela preservação da cozinha simples e saborosa da tradição; menos experimental, portanto. É sugestivo, a esse respeito, que um dos dois "estrelados" restaurantes da cidade, o Santo (que fica no elegante Hotel Eme Catedral), seja de um cozinheiro basco, vale dizer, Martin Berasategui, um dos chefs mais famosos da Espanha; o outro restaurante é o Abantal, onde se aproveita mais os ricos produtos andaluzes, como o atum vermelho de almadraba (objeto de outro post). Ambos têm uma estrela no prestigiado - e muito confiável - Guia Michelin. O Santo, em especial, conta também com um bar lounge que é um dos destaques da noite sevilhana.  
Azeitonas líquidas do "Santo", nov. 2011
Meus destaques em Sevilha, de todo modo, ficam para dois gastrobares. Primeiro o Binomio, em que se pode desfrutar de tapas riquíssimas e vinhos cuidadosamente recomendados à barra, como é costume na Espanha, se você não desejar sentar-se em uma das mesas que oferecem; eu prefiro sempre as barras, em se tratando de bares de tapas; ali se conversa e se desfruta de uma forma muito particular. O Binomio, que fica no bairro do Nervión (próximo à Faculdade de Direito da Universidade Hispalense), conta com tapas elaboradas e saborosas a excelentes preços, como as sardinhas maceradas, o hambúrguer de calamar (isso mesmo) e a carrillada ibérica (um típico prato andaluz). 
Sardinas maceradas do Binomio
Já o La Azotea, que tem três unidades na cidade, está sempre cheio e oferece pescados e chacinas locais de grande qualidade; ali também se tomam - e se compram - bons vinhos. Conta ainda o Azotea com uma excelente bodega, na unidade "Vinos y Más", a minha preferida, onde se pode provar e comprar queijos, ostras e algo mais, como diz o nome. 
La Azotea da Calle Zaragoza
Em Sevilha come-se bem ainda no Az-Zait, um dos melhores restaurantes da cidade, grande destaque de cozinha com toques árabes e excelente custo-benefício (Calle Conde de Barajas, Bairro San Vicente, próximo à Alameda de Hércules, já quase no bairro La Candelaria); e no Taberna del Alabardero, restaurante mais tradicional e sério, situado em uma antiga mansão senhorial da Calle Zaragoza (bairro Al Arenal). Para provar o famoso jamón ibérico de bellota, eu indicaria mais o Flores, que é como um bar de tapas da Calle Adriano (bairro El Arenal), com uma boa bodega e uma apreciável oferta de chacinas e embutidos. Há ainda o La Mojigata e o Arenero Taller de Tapas, inventivos e muito bons. Neste último se oferece uma interessante versão do Salmorejo - a típica sopa fria andaluz - com manjericão desidratado e sorvete de mascarpone. 
            Salmorejo do Arenero              Gelatina de Gin-Tonic do Az-Zait
                                                   Sushi Perestroika do La Mojigata


Nos entremeios das visitas gastronômicas, recomendo alguns lugares bacanas: 
- No centro (bairros de Santa Cruz, centro histórico e Judería): Alcázar de los Reyes Cristianos (perde de longe para a Alhambra de Granada, mas tem um rico e singular legado árabe); Catedral e La Giralda (a maior catedral gótica da Espanha, com uma impressionante torre em estilo mudéjar); Museo del Baile Flamenco (para uma história bem contada da famosa dança andaluz); Plaza Nueva (bela praça onde desemboca o bonde; ponto de partida para boas descobertas). Da Plaza pode-se seguir pela estreita Calle Zaragoza, com um hotel onde se provam drinques nacionalmente premiados (Hotel Inglaterra), uma padaria francesa (Societé e, na Plaza Nueva, Colette), uma livraria de viagens (Ultra Mar), um artesão de violões, uma loja de roupas femininas em estilo nórdico (Hamevaki), uma sorveteria excelente (La Campana), um restaurante tradicional (Taberna del Alabardero), um gastrobar moderno  (La Azotea) e ruelas atravessadas, para outras descobertas. Por uma das ruelas chega-se ao Vincci La Rabida, um dos bons hotéis da cidade. A Calle Zaragoza é a minha experiência bem particular de Sevilha. Essa rua é uma boa ligação do centro com o bairro de Al Arenal. Em La Judería pode-se ver o tablao flamenco Carbonería, menos turístico e muito bom.  
- Em El Arenal: Teatro de la Maestranza, Plaza de Toros de La Maestranza, Torre del Oro. Ali é onde se vê, da margem sul, o maior esplendor do rio Guadalquivir. Vale muito andar pelas ruas, encontrando bares de tapas.  
- Triana: fica na outra margem do rio. O bairro é famoso por suas cerâmicas e flores. Bom para andar, vendo as belas fachadas das casas. Em Los Remedios, perto de Triana, acontece todo mês de abril a famosa feira de Sevilha. 
- Candelaria: Arcos de La Macarena, conventos (de San Leandro, p. ex.). Bairro boêmio e alternativo da cidade. Vale demais.


Tudo isso dá uma pista do que é Sevilha: uma cidade cosmopolita, de pessoas simples e muito acolhedoras e de milagrosa mistura (séculos de presença árabe, reconquista cristã, judeus sufocados nos guetos).       
Há muito mais, claro: a magnífica Plaza España, os pavilhões da exposição de 1929, o Paseo de las Delicias, a Universidad, La Cartuja (centro tecnológico)... Mas acho que já dá para despertar a vontade, não?      

sexta-feira, 25 de maio de 2012

The Freewheelin' Bob Dylan

Hoje acordei com vontade de ouvir Bob Dylan e abri o The Freewheelin', gravado em 1963 e que contém o clássico Blowin' in the wind. Uma manhã bonita e ensolarada em Sevilla me surpreende na emoção saudosa de Girl from the North Country, sem dúvida a minha canção favorita dentre todas desse mago chamado Bob Dylan. Essa música, a voz de Dylan, essas palavras, mexem muito comigo. Aos leitores destes entremeios:


"Please see for me if her hair hangs long,
If it rolls and flows all down her breast
Please see for me if her hangs long,
That's the way I remember the best.


So if you're traveling' in the north country fair,
Where the winds hit heavy on the borderline,
Remember me to one who lives there. 
She once was a true love of mine".  

sexta-feira, 27 de abril de 2012

The Long Goodbye: Once again

Mr. Harlan Potter, sobre a Los Angeles dos anos 1950, em um dos meus trechos favoritos de The Long Goodbye (O Longo Adeus), de Raymond Chandler, que agora revisito (na foto, capa da primeira edição, de 1953): 


"- Há algo muito peculiar acerca do dinheiro - continuou -. Em grandes quantidades tende a adquirir vida própria, inclusive consciência própria. O poder do dinheiro resulta muito difícil de controlar. O ser humano tem sido sempre um animal venal. O crescimento das populações, o enorme custo das guerras, as pressões incessantes da tributação confiscatória - todas essas coisas tornam o homem mais e mais venal. O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não está em condições de permitir-se ideais. Precisa comprar comida para sua família. Nesta época nossa temos visto um escandaloso declínio tanto da moral pública quanto da moral privada. De pessoas cuja vida está constantemente sujeita à falta de qualidade, não cabe esperar qualidade. Não se pode ter qualidade com produção em massa. Nós não a queremos porque dura muito. De maneira que a substituímos pelo estilo, que é uma fraude comercial destinada a produzir uma obsolescência artificial. A produção em massa não pode vender seus produtos no ano seguinte se não consegue que pareça fora de moda o que vendeu este ano. Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais resplandecentes do mundo. Mas nessas tão encantadoras cozinhas brancas a dona de casa americana é incapaz de produzir uma comida aceitável, e os banheiros resplandecentes são sobretudo um receptáculo para desodorantes, laxantes, pastilhas para dormir e todos os produtos dessa fraude organizada que recebe o nome de indústria cosmética. Fazemos as melhores embalagens do mundo, senhor Marlowe. Mas o que há dentro é na maior parte só lixo".  
(Tradução de Sérgio Rebouças)


E para quem quiser conferir o original: 


"'There's a peculiar thing about money,' he went on. 'In large quantities it tends to have a life of its own, even a conscience of its own. The power of money becomes very difficult to control. Man has always been a venal animal. The growth of populations, the huge costs of wars, the incessant pressure of confiscatory taxation-all these things make him more and more venaL The average man is tired and scared, and a tired, scared man can't afford ideals. He has to buy food for his family. In our time we have seen a shocking decline in both public and private morals. You can't expect quality from people whose lives are a subjection to a lack of quality. You can't have quality with mass production. You don't want it because it lasts too long. So you substitute styling, which is a commercial swindle intended to produce artificial obsolescence. Mass production couldn't sell its goods next year unless it made what it sold this year look unfashionable a year from now. We have the whitest kitchens and the most shining bathrooms in the world. But in the lovely white kitchen the aveitage American housewife can't produce a meal fit to eat, and the lovely shining bathroom is mostly a receptacle for deodorants, laxatives, sleeping pills, and the products of that confidence racket called the cosmetic industry. We make the finest packages in the world, Mr. Marlowe. The stuff inside is mostly junk.'"          

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Touradas da Real Maestranza de Sevilha



Aproxima-se a Feria de Sevilla, a famosa Feria de Abril, esperada para o próximo dia 23: a fantasia e as sugestões andaluzas vertidas desde os olhos das sevilhanas, as casetas, o cante e o baile, os finos e as manzanillas de Jerez em volumes inconfessáveis; mas, sobretudo, a festa popular que para mim mais a singulariza, já iniciada duas semanas antes, na Real Maestranza de Caballería (a Praça de Touros de Sevilla): os toreos ou touradas, isto é, as corridas de touros de lidia, tradição que a modernidade divide entre o encanto estético dos aficionados e o asco de - talvez - meio mundo, ou mais. Livre de suscetibilidades racionalistas (ou de qualquer outra espécie), com o espírito - para valer-me de uma imagem de Onfray -  avesso ao de quem comparece a um lugar com a Bíblia numa mão e a Declaração de Direitos Humanos na outra, rendi-me ao chamado e, no Domingo da Ressurreição, estava eu no Tendido 9 da Maestranza, a assistir às voltas do sevilhano Morante de la Puebla, do alicantino José María Manzanares e do jovem sevilhano, menos conhecido, Daniel Luque; e dos touros de Pedro Domecq. Morante e Manzanares são dois clássicos da arte; este último, aquele domingo, resultou ser o único triunfo, apesar das expectativas de todos também com Morante. Parece que os touros não estavam tão bem, dizia a crítica.  
Aquilo tudo é de um efeito incrível; não se desprende com facilidade, há que predispor-se aos silêncios, aos desafios, à coragem compartilhada, à dança dos passos, às vozes e olhares trocados, à proximidade da morte para uns e outros. Não estou falando de crueldade, que é outro assunto (nem quiçá terão sido especiais sentimentos desse tipo que inspiraram a proibição das corridas na Comunidade da Catalunha, em que por outro lado perduram outras práticas pirotécnicas de - digamos - não especial apreço pelo animal). 
Uma arte cruel, que seja. A arte, às vezes, não se mostra sem sacrifícios. 
Mas quem seria eu, brasileiro em terras estranhas, para explicar algo tão próprio da alma espanhola? Deixo para o peruano (no Peru também há corridas) Mario Vargas Llosa, que em 2000 esteve na Feria de Abril e pronunciou um discurso memorável chamado "El Pregón de Sevilla", reunido num volume chamado Sentimento del Toreo, com que passei uma agradável tarde de sábado. Alguns entremeios selecionados:  
"Los toros son un ingrediente tan esencial de esta Feria como el sol, el vino, la música o la picardía que refulge en los ojos de las sevillanas. Pero, a diferencia de lo que ocurre con la danza, el canto o las hijas de esta tierra a cuyo hechizo se rinden todos, la fiesta de los toros no ha merecido, ni merecerá nunca, la aprobación general". 
"...es, ante y sobre todo, una fiesta popular, a la que imprimen la poderosa corriente de vida  y de entusiasmo que la sustenta, y su autenticidad y energía, los miles de millares de hombres y mujeres de toda suerte y condición que en ella gozan y se encuentran y reconocen y fraternizan en la emoción compartida, en la explosión del aplauso o el flamear de los pañuelos pidiendo un trofeo para el diestro que cumplió, o en la silbatina y el abucheo al que defraudó, sentimientos elementales y volubles que se vuelcan con una libertad y una sinceridad ya casi ausentes en todas las otras manifestaciones colectivas, sobre todos las de deportes, empezando por el fútbol, donde, a diferencia de lo que ocurre con la fiesta de toros, el aficionado no va a admirar lo digno de ser admirado y a silbar lo indigno, lo feo y la chapuza, sino a hacer una exhibición de partidarismo regimentado: aplaudir y vitorear la jugadas del equipo propio y abominar y negar las del contrario. Por eso, el fútbol ya no tiene aficionados; sólo hinchas, es decir, partidarios, y, a menudo, fanáticos. En los toros todavía se conserva viva esa imparcialidad del amante de las artes, que entra a un museo, abre un libro, se acomoda en la sala de conciertos o de danzas, con el ánimo dispuesto a dejarse subyugar, y que sólo muy a pesar se resigna a desaprobar lo que ve, lee o escucha, cuando no responde a sus expectativas". 
"En este exponerse con apenas un trapo rojo en las manos a las astas de esa bravía montaña de cuatrocientos o quinientos kilos de nervios y músculos educada para embestir y matar anida un resquemor ético, de hidalguía, de escrúpulo y solidaridad, una recóndita búsqueda de paridad, de compartir el riesgo..."

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Mark Lanegan


Avisa-me o amigo Glauco Sobreira que Mark Lanegan está em tour na Europa, com duas apresentações na Espanha. Uma delas ontem, no Kapital Theater de Madrid; a outra hoje, na sala Apolo em Barcelona. O amigo teve a privilegiada oportunidade de chegar a Lisboa no sábado passado, para a primeira apresentação do músico e de sua banda na Península. Eu, infelizmente, não tive tempo de rumar para o Norte ontem (menos ainda hoje), mas o assunto me dá ensejo para um entremeio desse artista singular, marcado pela voz soturna e por produções solo cheias de boas surpresas - para além de suas incursões no grunge mais cru (às vezes intragável). Destaque para seu último álbum, Blues Funeral, do qual vai oferecida a seguir a mostra para mim mais bem sucedida, o slow Phantasmagoria Blues.


      

terça-feira, 20 de março de 2012

Sevilha!

No entremeio de um ritmo frenético, paro para contemplar Sevilha, esse desconcertante e feminino corpo andaluz cheio de vozes. 


Enviados pela amiga Tércia Montenegro em carinhosa homenagem à minha estancia, ofereço os versos de João Cabral, sobre "a casa que vai comigo, e que invoco quando é preciso": 


SEVILHA DE BOLSO

Carregamos Sevilha, os dois,
quem foi e quem lá nunca foi.

Sevilha é como uma atmosfera
que nos envolve, onde que seja,

que levamos onde que formos
e que cria para mim um entorno

que é Sevilha, e se sou que a levo
sei que és tu o próprio amuleto,

que onde quer que estejamos sozinhos
nos traz Sevilha, seu dentro íntimo,

de uma casa que vai comigo
e que invoco quando é preciso.

Então, muda todo o ambiente,
eis-nos em Sevilha, de repente,

em nosso a dois e até ouço fora

sua formigagem rumorosa. 

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Brad Mehldau e a Arte do Trio


O trio sem dúvida é uma das expressões mais sofisticadas do jazz. Parecem impensáveis os rumos e a marca característica que essa música tomaria sem aquela arte delicada em que se ouve, perfeitamente individualizado e ao mesmo tempo em rica integração, o acento de cada instrumento, de cada voz harmônica e melódica. Os grandes trios representam a mais perfeita forma jazzística, de improvisação, de simbiose musical. Isso antes e hoje. Que o diga o Bill Evans Trio, responsável por memoráveis produções, como as complete records no Village Vanguard; e também o Oscar Peterson Trio, certamente o pioneiro no gênero. Esses dois trios, por certo, formaram as mais notáveis vozes do passado, não apenas pelo talento individual de Evans e de Peterson, mas também pelo entrosamento que conseguiram realizar, na forma de piano-contra-baixo-bateria, fazendo-nos pensar que de nada mais precisa a música. No jazz contemporâneo, e como mostra da perenidade do formato, destaca-se o trio do pianista norte-americano Brad Mehldau, iniciado no final dos anos 1990 e ainda hoje em plena atividade, com Larry Grenadier (contra-baixo) e Jeff Ballard (bateria, no lugar de Jorge Rossy). Mehldau, claro, não se restringiu ao trio, mas está aqui a melhor expressão do talento clássico - inspirado em Evans e Peterson - desse pianista único em nossos dias, que, além de composições próprias, oferece interessantes interpretações de músicas dos Beatles - Blackbird e Dear Prudence, por exemplo - e do Radiohead - como Paranoid Android e Exit Music -, dentre outros. 
Há quatro partes de The Art of the Trio (ponto alto da discografia do pianista), a primeira delas lançada em 1997; a melhor é a segunda, o álbum Live at the Village Vanguard, gravado no lugar que imortalizara o grupo de Evans. Mehldau também gravou com o guitarrista Pat Metheny, em um excelente quartet (vide o Metheny Mehldau Quartet, de 2007), mais um profícuo formato jazzístico. Outros bons álbuns  são: Anything Goes (trio), de 2004; Day is Done (trio), de 2005; Largo, de 2002; e Highway Rider, de 2010. Os vídeos: um solo de Mehldau, My favorite things, ao vivo em Marciac; e uma performance do trio, com o ótimo Samba e Amor, de Chico Buarque (e não "Samba do Grande Amor", como erroneamente indicado na apresentação):  

           

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Adele no Grammy Awards


Em um Grammy sem grandes opções expressivas, o destaque fica mesmo para a excelente música da cantora britânica Adele (6 premiações), situada num patamar bem distante do de seus concorrentes. Por outro lado, os 4 prêmios do Foo Fighters, para mim, representam um marcado sintoma da crise da música pop contemporânea, particularmente a do rock. Adele, porém, salva o panorama, com sua voz enérgica e espiritual, com suas canções e gravações bem produzidas. O primoroso álbum "21" (foto) merece todo o crédito que se lhe empresta, mostrando que o contemporâneo e a posteridade, em matéria de soul music, ainda têm muito a oferecer. Fiquem os leitores com Set Fire to the Rain, ao vivo no Royal Albert Hall: 




  

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Curiosidades Gastronômicas

Algumas curiosidades da rica história do sabor: 

1. Queijo Roquefort - Aveyron, França. O famoso queijo azul Roquefort é produzido nos limites do departamento de Aveyron, na região de Midi-Pyrénées, Sudoeste da França. Esse poderoso queijo de ovelha tem uma origem curiosa: um acidente natural. Em tempos muito remotos, uma parte do escarpado maciço calcáreo de Combalou - que fica na região francesa já indicada - desmoronou, convertendo-se em um monte de escombros. A partir desse acontecido, os fragmentos de rocha originaram buracos de consideráveis dimensões, além das chamadas fleurines, grutas que uniam as covas naturais ao mundo exterior, permitindo a entrada de ar fresco. Sob essas favoráveis condições de ventilação é que se propagou o fungo penicillium roqueforti, isto é, a essência do queijo que surgiria tempos depois. O roquefort é produzido com leite exclusivamente da ovelha da raça lechal e, após uma cuidadosa produção na bodega, sob a supervisão de um mestre queijeiro, o produto vai posto para curar nas cavidades das famosas montanhas caliças, em Combalou (veja a foto). Os característicos pontos e listras que atravessam o queijo representam o mofo produzido pelo fungo (penicillium roqueforti). Os entusiastas sabem que o roquefort não se pode confundir com outros queijos azuis, como o italiano gorgonzola - que, aliás, é de leite de vaca. Quem quiser experimentar um legítimo deve procurar o selo da apellation d'origine contrôlée (A.O.P.) e, essencial, um bom produtor. Outros queijos azuis dignos de referência, para aproveitarmos a oportunidade, são o queijo azul bávaro (alemão) e o bleu d'Auverne (francês), ambos de leite de ovelha, além do já mencionado gorgonzola. Para mais informações sobre o roquefort, consulte-se o sítio eletrônico www.roquefort.fr, com opções de texto em francês, espanhol e inglês.
 2. Il Carpaccio - Venezia, Itália. O carpaccio original é uma criação do italiano Giuseppe Cipriani, fundador do famoso Harry's Bar, situado em Veneza (foi ali que se fez também o drink Bellini). Nos anos 1950, frequentava o bar a condessa Amalia Nani Mocenigo, a quem um médico prescreveu uma dieta rica em carne crua, por conta de uma anemia padecida pela aristocrata. Giuseppe concebeu então um prato com finíssimas lâminas de carne crua, em uma marinada de maionese, limão, molho Worcester, leite, sal e pimenta branca; nominou-o de carpaccio em virtude de uma exposição, que no tempo se fazia em Veneza, da obra rica em cores cores do pintor veneziano Vittore Carpaccio. O carpaccio original, portanto, é de carne crua. Hoje existem muitas variações no preparo. Uma interessante, para mim, é a que usa lâminas de queijo grana padano e, além disso, sem maionese. Há hoje carpaccios de salmão, de polvo e, especialmente na Espanha, de cogumelos. 
3. Atún Rojo de Almadraba - Andalucía, Espanha. Mítica é a história que rodeia esse exclusivo e enorme pescado - o atún rojo (Thunnus thynnus) - da costa gaditana, uma referência à província andaluza de Cádiz. O atún é pescado por um antigo método romano - feroz, mas sustentável - chamado almadraba, uma rede que aprisiona e entrelaça os peixes em rota desde o oceano Atlântico em direção ao mar mediterrâneo (veja na foto). Os peixes presos nas redes e fechados entre barcos são capturados por arpões manejados por experientes pescadores. Hoje só existem quatro almadrabas, nas cidades gaditanas de Conil, Barbate, Zahara de los Atunes e Tarifa. A atmosfera mítica reside no destino mágico desses peixes, que, passando da zona intermédia entre Atlântico e Mediterrâneo - onde se acham os pontos de pesca -, desaparecem para sempre. A carne do atún rojo (atum vermelho) de almadraba (único sistema apto a interceptar os peixes na rota) é incomparável, constituindo uma autêntica preciosidade gourmet da Espanha. 
4. Bacalao e Bonito - País Vasco, Espanha. Em 1835, José María Gurtubay, empreendedor da cidade basca de Bilbao e que se dedicava à exportação de bacalhau da Islândia, Escócia e Noruega, enviou uma carta a seus provedores na qual demandava "100 o 120 bacaladas" - em português isso significa "100 ou 120 bacalhadas (bacalhau curado)". Ocorre que alguém leu o "o" espanhol (que significa "ou") como mais um zero, concluindo, assim, um pedido de 1.000.120, ou seja, mais de um milhão de unidades. O empreendedor já estava desesperado para se desfazer dessa quantidade recebida, quando, por conta da primeira gerra carlista (episódio da história espanhola do início do século XIX), a cidade de Bilbao foi sitiada, com o que o bacalhau serviu para alimentar grande parte da população, gerando vultosa fortuna para o empresário Gurtubay. Foi assim que o bacalhau se tornou uma tradição no País Vasco. A propósito, o bacalhau da Espanha é apenas salgado, mas não secado - diversamente do de Portugal -, o que lhe confere uma textura mais gelatinosa. Exceção somente para o bacalhau catalão peixopalo, rica jóia da região (província) de Girona. A respeito do peixe Bonito, a gastronômica região basca empresta aos melhores exemplares o prestigiado selo Euskal Label (veja na foto), que se insere no peixe e contém um número de referência que permite ao consumidor consultar, na rede mundial de computadores, os detalhes de sua captura: em que barco foi pescado e com que arte, quando desembarcou e até em qual porto! Muito interessante ver com que cuidado os alimentos locais - expressão eloquente da cultura de um povo - são tratados em um país como a Espanha. 
Bem, por ora é isso. Oportunamente voltaremos com mais curiosidades da gastronomia mundial, com foco na América do Sul e, de outra vez, na Ásia.    

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Jazz Contemporâneo: a Big Band de Guillermo Klein


A mais surpreendente experiência que tive em minhas recentes visitas ao jazz contemporâneo foi a descoberta do álbum Filtros (2008), de Los Guachos, grupo do pianista argentino Guillermo Klein, que estudou em Boston e depois formou uma big band de 17 peças em New York, incursionando também pela Espanha. 
Klein oferece uma música inventiva e de recursos muito originais, uma raridade no jazz de hoje, sem se desprender de uma extraordinária riqueza expressiva, mesclando ritmos latinos,  síncopes e arranjos harmônicos notáveis, em uma condução jazzística eficiente, na qual cada instrumento, inclusive a voz, está no seu exato lugar, entrosando-se magicamente ante o meu assombro e deleite. Leitores deste entremeio, falo da melhor música que se faz na contemporaneidade; se bem assimilada, futuramente poderá ser precursora das tendências vindouras, como um dia foi a música de Coltrane, por exemplo - claro que, ante a interveniência de múltiplas variáveis nesse campo, não são recomendáveis maiores prenúncios, como tudo em arte; fica, porém, o meu registro.   
Do álbum Filtros - que vou presentear ao meu amigo Glauco Sobreira - destaco Va Roman, Miula, Memes, Volante e Snake, se é que posso escolher algo nesta maravilha musical. 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Australian Open 2012

Leitores do Entremear podem ter estranhado a ausência de menção à final do Australian Open 2012, primeiro Grand Slam de Tênis da temporada. Somente agora, no entanto, é que posso ver as coisas com alguma distância, sem mais os nervos aflorados do último domingo. Assisti a cada minuto daquele jogo de quase seis horas, a mais longa final de Grand Slam da história. Torci ferrenhamente pelo Rafael Nadal e, houvesse comentado antes a partida, não teria feito justiça a Novak Djokovic.
O jogo foi de um nível impressionante, como tem sempre acontecido entre os dois tenistas na história recente. O embate se deu entre a resistência de Nadal e a eficiência técnica de Djokovic. Impressiona, de um lado, a capacidade de concentração e de sobrevivência de Nadal, mesmo jogando em um nível menor por quase todo o jogo. De outro lado, a regularidade de golpes vencedores - de forehand e, com igual eficiência, de backhand - do Djokovic. O físico dos dois está mais ou menos equivalente, ao contrário do que sucedia antes - em que Nadal era bem superior no quesito.
Dois momentos decisivos para a partida ser o que foi: o 0 (zero) 40 (triplo break point) que Nadal superou, levando o quarto set para o tie-break e vencendo a parcial; o saque perdido por Nadal quando poderia conseguir um 5 (cinco) 2 (dois) e, assim, uma vitória certa no quinto set. Fato é que, nas circunstâncias, qualquer um poderia ter vencido.
As defesas de bolas foram algo nunca visto no tênis. Em nível técnico e elegância, claro, nenhum dos dois supera Roger Federer - ainda o melhor -, mas a capacidade de luta, a disciplina tática e a estrutura mental de Nadal e Djokovic é que os situa no topo.
Destaco também, no Australian Open, a extraordinária evolução de Andy Murray, o que me faz acreditar em mais concreta possibilidade de seu ansiado Grand Slam. Murray evoluiu bastante na parte mental; nunca o vi, além disso, lutando tanto por cada ponto e até o fim do jogo. Só por um pequeno descuido é que perdeu de Djokovic na semi-final.
O sérvio, para fecharmos, mostra o tênis mais eficiente do circuito, com uma capacidade física à altura dessa condição. Justifica, assim, a sua posição de número 1 (apenas não precisa alardear esses duvidosos problemas físicos que não enganam a mais ninguém).
Agora vamos aos Masters 1000: Miami, Indian Wells, Monte Carlo, Madrid, Roma... com exceção do de Monte Carlo, todos foram vencidos por Novak no ano passado, o que significa muitos pontos a defender até Roland Garros. A batalha continua!

sábado, 28 de janeiro de 2012

Stacey Kent

Mais uma passagem pelo jazz contemporâneo me traz boas surpresas com a cantora Stacey Kent, que interpreta em francês e em inglês. Em atividade desde 1997 e multiplamente premiada, Kent gosta de Tom Jobim e de bossa nova, tendo até gravado em 2001 o álbum Brazilian Sketches. A maior expressão de sua voz bonita, leve e incisiva, assim como de excelentes interpretações e arranjos instrumentais , está no álbum Breakfast on the morning tram, de 2007, um primor musical. Deste disco - que contém uma versão francesa do Samba da bênção de Vinicius de Moraes e Toquinho e uma distinta revisita a What a wonderful world - ofereço aos leitores a bela faixa Landslide


No vídeo vai - de outro álbum mais recente - Les eaux de mars, versão francesa das Águas de março de Jobim:

 

Entremeios Colombianos

Esta semana andei recordando a viagem que Roberta e eu fizemos a Bogotá e a Cartagena de Índias, na Colômbia. Duas cidades bem diferentes entre si, a realçar o contraste que é marca colombiana: Bogotá fria, escura, alta; Cartagena quente, ensolarada, no nível do mar onde desemboca. Ambas, porém, encerram o espírito alegre e colorido do colombiano. Não há mais que dedicar maiores atenções à alardeada insegurança da Colômbia, tristemente associada ao terror do narcotráfico. Por mais que o atual estado das coisas seja de segurança ostensiva e imposta - como o olhar mais desavisado pode captar nas ruas de Bogotá, vigiadas pela guarda e pelo exército -, a imagem antes divulgada, se nunca foi a real, hoje nem mais se sustenta. Disso me ficou somente a cena de um soldado de capuz e fuzil, como que adormecido numa rua escura e deserta do bairro bogotano de La Candelaria. Mas o que realmente cultivo de minha experiência colombiana - um rico café, uma interessante gastronomia, a simplicidade das pessoas - compartilho assim com os leitores destes entremeios:

       
1. Pátio do Museo Botero, em Bogotá. Fernando Botero é um conhecido artista colombiano, em cuja memória o Banco Nacional mantém um belo e rico museu no bairro de La Candelaria. Botero é bastante característico pela forma das suas esculturas e pinturas, retratando pessoas e animais de corpo avantajado. Uma experiência inolvidable. Nas fotos, o bonito pátio do Museo e alguns exemplos da arte de Botero. 
2. Andrés D.C., em Bogotá. Um restaurante-bar-"casa de show" (ou algo que lembre tudo isso) que é uma instituição colombiana. Mais conhecido é o Andrés Carne-de-Rés, que fica numa cidade fora, mas perto, de Bogotá; visitamos, porém, o Andrés D.C., mais recente, com seu prédio de vários andares. O caráter desse lugar reside na decoração inovadora (com uma multiplicidade de objetos e combinações), na inacreditável variedade do cardápio - entre pratos, petiscos e drinks -, nas pequenas cenas praticadas em cada mesa, no clima alegre e descontraído. O tamanho é incogitável antes de chegar lá. Fica num bairro nobre de Bogotá, que até lembra bairro carioca do Leblon (sem nenhuma maldade na comparação).
 
3. Ruas, praças e sossego de Cartagena de Índias. Andar e andar: eis o encanto de Cartagena, uma cidade que já foi um forte, preservando hoje um distinto centro histórico, que concentra a vida íntima da cidade entre as muralhas. Depois da caminhada, o aconchego de um dos elegantes hotéis boutique (como o La Merced) de onde se veem os telhados e o mar...
 4. Bares e restaurantes de Cartagena de Índias. Cartagena é bem gastronômica (simples e saborosa), apesar de abrigar alguns restaurantes com muito mais fama do que méritos (caso do El Santísimo, na minha opinião). Apreciei o La Vitrola - reduto de Gabriel García Márquez - e o La Cevichería (não é exatamente um restaurante, e sim um lugar muito mal-arrumado que ficou famoso por causa de uma referência de Anthony Bourdain; mas nem por isso deixa de ser bom). Roberta, fiel à sua verve de estusiasta da cozinha italiana, citaria também o Enoteca. Entre os bares há o Café del Mar, para um elegante happy-hour num dos extremos das muralhas.  
Gabriel García Márquez, já que falei dele, tem uma casa em Cartagena; não vive mais lá, no entanto. "Cuando vuelve viene acá", diz, orgulhoso, o simpático garçon do La Vitrola, que se parece com Gabo.  

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Viagens de Cecília Meireles

Revisitando as Crônicas de viagem de Cecília Meireles, selecionei alguns entremeios para este início de semana. Os textos citados foram escritos em 1953 (o último em 1954). 
- Sobre o turista: 
"Quanto mais viajo, mais me torno antiturística. Como pode a bela Itália ter sossego com estas ondas e ondas de forasteiros que a atravessam de ponta a ponta, como formigueiros em mudança? É verdade que, indústria tão bem organizada, em país de tanta abundância artística e tanta variedade de paisagens e costumes, só pode dar este resultado que vemos. E fico triste ao pensar que turistas são como essas pessoas que querem visitar à força uma celebridade qualquer e, quando o conseguem, não adianta nada - não a entendem suficientemente para justificarem a perda de tempo que lhe causaram, ou a pequena perturbação do ritmo de sua vida. 
Mas os turistas aumentam todos os dias. E a primavera já vem, cheia de jacintos e violetas. (Há qualquer coisa errada, neste mundo...)". 
- Paris: 
"Dos museus, não se pode falar, porque seria fazer catálogos de obras-primas. Infelizmente, os bandos turísticos que desfilam em passo de ganso pelas salas e pelos corredores perturbam todo o efeito de cada quadro, - que é assunto de contemplação, e não desprende sem mistério de repente, por mais que se esforce o guia, também já fatigado dos visitantes. 
É uma dor no coração ver que aqueles trágicos lugares por onde Maria Antonieta andou sofrendo são dos mais belos para serem agora visitados, mesmo quando o guarda, com certo ódio, - talvez profissional - dramatize episódios violentos, feroz ainda a outra realeza, testas coroadas, mulheres soberbas e outras maneiras de dizer". 
- Amsterdam: 
"Com esquadros imaginários, com lápis imaginários, pus-me a traçar vagos desenhos nesse fino papel imenso, da noite desdobrada: pontes sobre os séculos, sobre os oceanos, entre as idéias... Meus esquemas afogavam-se na impalpável matéria da noite. Certamente, se dormisse, não teria sonho mais fluido, mais fugitivo, mais deslembrado. 
Pela madrugada, a cidade começou a voltar: delineavam-se as ruas, lá embaixo, muito longe... Ouvi ou imaginei campainhas de invisíveis cavalos, acolchoadas em névoa?"
- Roma: 
"Em qualquer lugar do mundo, uma coleteira é uma senhora que faz coletes. Mas aqui em Roma existe uma que é um espírito do escultora trabalhando com cetins, elásticos, barbatanas e colchetes. Ela não pergunta às freguesas: 'Qual é o seu número?' e tira secamente da prateleira o artigo que lhe pedem. Não, esta não é como as outras. Esta contempla a freguesa de perto, de longe, de frente, de lado, abre os braços, fala de museus, desenha no ar perfis de sílfides, e sua linguagem é tão aérea, transparente, lunar, que antes de comprar o espartilho a candidata já se sente reduzida às dimensões a que se destinam aqueles aparelhos. Quando, porém, tal redução é visivelmente impossível, - coisa fácil de acontecer não só a quem mora na Itália, mas até a quem por lá passa, dada a generosidade das massas e dos vinhos, - então é que a escultora se revela insigne psicóloga. Discorre sobre a solidez da beleza clássica, planta-se na sua loja como um mármore num robusto pedestal, declama com inspiração clássica o elogio dos deuses triunfais e convence a interlocutora, um pouco humilhada com o seu peso, de que a beleza feminina é essencialmente exuberante. (A julgar pela intensidade da sua representação, quase poderia dizer - essencialmente calipígia)". 


- E esta última, sobre a Índia, vai para a minha querida amiga Tércia:
"Como vai o Ocidente compreender essa grandeza do despojamento indiano, da sua não-violência, da sua moderação - quando a máquina inventou uma velocidade inumana, e já ninguém pode parar para refletir, para estudar, para penetrar séculos, idiomas, filosofias, - se todos querem viver imediatamente, confortavelmente, a serviço do corpo e da hora? 
Ponho-me a pensar no que deve ser a sabedoria. E como praticá-la. E tudo é longe, terrivelmente longe: não há convênios, conferências, congressos que transformem o homem de egoísta em generoso, de violento em pacífico, de cruel em manso, de cego em lúcido... O processo de edificação humana é lento, devia ser unânime, constante...
Como somos cada vez em um mundo menor, mais próximo, unido no mesmo destino terreno, devíamos acertar a nossa marcha numa certa direção e com um certo ritmo. Entre a vida e a morte - esse espaço tão curto - devíamos ser melhores do que temos sido e estamos sendo". 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Musas do Palau de la Musica Catalana

Em março de 2010 fui conferir uma apresentação da banda de jazz do cineasta Woody Allen no Palau de la Musica Catalana, em Barcelona. Meu deslumbramento, entretanto, foi com a arquitetura irresistível do lugar.  
Fotografei então esse maravilhoso mosaico (com esculturas em relevo) em um dos semicírculos da sala de conciertos. Em todo o semicírculo, que fica debaixo do órgão, veem-se dezoito esculturas de musas modernistas saindo de um lindo mosaico chamado trencadís - aquele tão utilizado por Antoni Gaudí, o famoso arquiteto catalão. Na minha fotografia se encontram sete dessas musas, e creio ter apreendido um rico cenário noturno, com interessantes realces de sombra e de luz. Percebam os leitores que as musas (as esculturas brancas) estão em relevo a partir da cintura e como que dançam desenhadas no mosaico, cada qual portando um instrumento musical. As esculturas são de Eusebi Arnau; os mosaicos, de Mario Maragliano e Lluís Bru. Contempla-se melhor a foto em seu tamanho real, conseguido com um "click". 
Acima desse semicírculo, no canto esquerdo da sala de concertos, há um busto de Josep Anselm Clavé, poeta, compositor e diretor de música catalão. São dele os versos com que termino este post, da obra Els Flors de Maig (1858):  
“Sob um salgueiro sentada, uma moça
trança alegre seus lindos cabelos de ouro...
é seu olhar fresca fonte cristalina,
violetas do bosque a adornam...” 
(Tradução de Sérgio Rebouças) 

Convicção Enófila

Disse o Marquês de Sade, em insuperável imagem: 
"A conversa, como certas partes da anatomia feminina, sempre corre melhor quando é lubrificada..."

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Trânsito Musical

Para que os leitores se apercebam e formem uma ideia do tempo médio que muitos de nós levamos em um dia de trânsito, aviso-lhes que hoje, por exemplo, deu para ouvir inteiramente o Birth of the Cool, de Miles Davis, com duração total de cerca de 37 minutos. 
Esse disco foi gravado quase dez anos antes do Kind of Blue, quer dizer, entre 1949 e 1950. A vocação precursora de Davis está também aí: como o nome do álbum sugere, forma-se o chamado cool jazz, tão fecundo e prolífico nos anos que se seguiram. O disco significa, sob outro prisma, um notável aperfeiçoamento do bebop, embora seja com frequência referido como reação a esse último estilo; reação, isso sim, a uma forma virtuosística e purista do bebop. Claro que o cool jazz difere do bebop por uma evidente questão de velocidade: o cool é uma música mais suave, mais lenta, mais leve; harmonicamente, porém, preserva as mesmas bases do bebop e é por isso que o considero um dos muitos aperfeiçoamentos que surgiram desse nicho que dominou os anos 1930. O próprio Davis, não se pode esquecer, gestou-se musicalmente no bop
A característica singular do disco pode ser identificada nas influências da música clássica, mas sobretudo na criatividade dos arranjos e na excelente e inovadora interpretação do noneto de Davis. Isso é jazz sofisticado. Destaco Gerry Mulligan (sax barítono) e o grande John Lewis (piano), notáveis arranjadores que estão na essência desse álbum, assim como Gil Evans, com seus ricos arranjos para, por exemplo, Moon dreams e Boplicity. Há também que referir os vocais de Dizzy Gillespie e Kenny Haggod, que faz uma bela interpretação em Darn that dream
Miles Davis, claro, tem o grande mérito da percepção visionária e da capacidade de agregar e integrar talentos individuais (o exemplo mais bem sucedido disso é Kind of Blue), além da interpretação sempre superior. Por essa razão, não pode ser desmerecido o crédito que se lhe dá, apesar das injustiças representadas pelo correlato esquecimento de arranjadores e intérpretes do nível de Mulligan e Lewis. Aliás, John Lewis depois formaria um excelente quinteto de cool jazz, com menos referências na história do jazz do que as merecidas.       
Finalizo oferecendo aos leitores Boplicity, um entremeio de Birth of the cool

5 Vinhos Argentinos

Este post vai para o leitor que, a um bom custo-benefício, quer experimentar dos melhores vinhos argentinos - na opinião do editor deste entremeio, claro, segundo uma experiência muito pessoal, sem vinculação com qualquer análise pretensamente especializada:
1. J. Alberto Malbec 2008. J. Alberto é o nome do vinho; a região, Vale del Río Negro, na Patagônia argentina; o produtor, a refinada Bodega Noemía (que faz o - mais simples - A. Lisa). Perfeito para compartilhar entre amigos; muito elegante e com bom corpo, oferecendo traços de marcada distinção. Os vinhos da Patagônia argentina realmente merecem mais atenção. Esse vinho, se comprado em Buenos Aires, sai a um preço incrível. Aqui em Fortaleza se pode encontrar o A. Lisa, também da Noemía, mas não é a mesma coisa do J. Alberto. 
2. Luca Pinot Noir 2008. Também um vinho da Patagônia, só que da sub-região do Vale del Uco. Vinho frutado, para quem gosta do estilo da uva pinot noir, assemelhando-se aos vinhos da Bourgogne francesa (e distanciando-se dos de Bordeaux), com menos corpo, mais leveza e mais maciez, portanto. Grande produtor de um raro pinot noir sul-americano. 
3. Saint Felicien Cabernet-Merlot 2007. Vinho produzido pela prestigiada Catena Zapata, da região de Mendoza. Tenho uma relação muito pessoal com ele, pois uma história de amor se escreveu sob os seus auspícios, nas luzes do restaurante El Mercado, do Faena, o famoso hotel portenho. Vinho simples, rico e encorpado. O preço é bom, e não tem erro. 
4. DV Catena Malbec 2003 Nicasia Vineyard. Vinho produzido em San Carlos, na região de Mendoza. As vinícolas Nicasia produzem vinhos magníficos, tanto quanto - na minha opinião - os da mais famosa Angelica Zapata, do mesmo produtor. Veja bem: não se trata de qualquer DV Catena, e sim daquele dos vinhedos de Nicasia, o que faz toda a diferença. 
5. Catena Zapata Malbec Argentino. Esse é o mais caro da lista, embora assim mesmo com um custo-benefício extraordinário. Vinho encorpado e fácil de beber, revelando uma produção muito cuidadosa e destinada a paladares exigentes. Só não é o melhor vinho da Argentina...
A foto ilustra a região vinícola da Patagônia.     

sábado, 14 de janeiro de 2012

Azeites da Espanha

A Espanha é o maior produtor de azeite do mundo (mais de 40% da produção mundial), seguida por Itália e Grécia. A Comunidade Autônoma da Andaluzia, por sua vez, responde por 80% da produção olivareira espanhola, abrigando 61% das oliveiras daquele país (as principais províncias produtoras são as de Jaén e de Córdoba). A Espanha conta atualmente com 27 denominaciones de origen, isto é, regiões demarcadas, regulamentadas e protegidas de produção de azeite, das quais 14 são andaluzas. Além disso, há mais de 260 variedades de azeitonas (!), sendo mais conhecidas a pictual, a hojiblanca, a lechín, a arbequina, a verdial e a picuda. O azeite espanhol, apesar de tudo, é ainda pouco difundido no Brasil, considerando a grande variedade espanhola de regiões e de azeitonas, e os diferentes óleos que daí se produzem. 
A título de referência ao leitor interessado nesse rico e barato prazer gastronômico, apresento 4 descobertas de azeites da Andaluzia: 
1. Aceite NUÑEZ DE PRADO: Azeite da região demarcada D.O. de Baena,  correspondente, no mapa que abre este post, ao número 17.  Essa denominação de origem se insere nos limites da província de Córdoba. Trata-se de um óleo obtido de frutos selecionados nos olivais de 700 hectares de propriedade, por um método idealizado pelo  Marqués de Acapulco y Villanueva no início do século XX, que consiste em extrair a “flor del aceite” de uma pequena quantidade de sumo de azeitona, através de um simples filtro (elaboração tradicional e artesanal). O cultivo é orgânico, sem uso de fertilizantes nem pesticidas artificiais. Azeite de aroma frutado, com um final amargo e ligeiramente picante. 
2. Aceite FUENROBLE: Azeite do destacado produtor POTOSÍ 10 e inserido na D.O. de Sierra Segura (número 16 no mapa), província de Jaén. Já foi premiado como o melhor azeite da Espanha. A única azeitona utilizada é a pictual, que aqui adquire um caráter muito elegante. Um azeite delicioso e diferente. 
3. Aceite CORTIJO DE LENTISCO: Também de azeitona pictual, esse é o azeite que conheço há mais tempo. Pertence à D.O. Poniente de Granada (número 25 no mapa), província de Granada. Produzido pela Agricosum, esse óleo tem muito corpo e aroma. 
4. Aceite OLEO CARZORLA: Como o nome sugere, essa marca inclui-se na D.O. Sierra de Cazorla (número 21 no mapa), província de Jaén. O produtor é a Aceites la Casería de Santa Julia. Esse azeite tem cor dourado-esverdeada - assim como muitos outros de Jaén -, com um sabor frutado e picante. 
Dos quatro, sem dúvida o Fuenroble é o mais marcante (como denuncia a quantidade de líquido na garrafa da foto...). Todos são ideais para consumir em crudo mesmo, com pão, mas se prestam também para refogar, ao contrário do que acontece com os azeites da azeitona lechín, por exemplo, que normalmente não se comportam bem no calor. A propósito, é um mito dizer que azeite para cozinhar pode ser qualquer um. Nada mais falso. Um molho de tomate, por exemplo, por certo levará o sabor peculiar do azeite empregado no sofritto (refogado inicial). Digo-o por experimentos próprios. 
Alem disso, quem gosta de gazpacho (uma sopa fria andaluza) pode fazer um ótimo com qualquer dos óleos indicados. Outro bom emprego desses ricos azeites pode ser em um batutto como o o pesto italiano, com alho, manjericão, pinhões/pignoli (ou outra amêndoa), queijo pecorino e/ou parmesão. Aqui, aliás, funciona bem um belo azeite toscano, como o Frantoio Franci, de Grosseto; mas isso é tema para outra conversa.