Mr. Harlan Potter, sobre a Los Angeles dos anos 1950, em um dos meus trechos favoritos de The Long Goodbye (O Longo Adeus), de Raymond Chandler, que agora revisito (na foto, capa da primeira edição, de 1953):
"- Há algo muito peculiar acerca do dinheiro - continuou -. Em grandes quantidades tende a adquirir vida própria, inclusive consciência própria. O poder do dinheiro resulta muito difícil de controlar. O ser humano tem sido sempre um animal venal. O crescimento das populações, o enorme custo das guerras, as pressões incessantes da tributação confiscatória - todas essas coisas tornam o homem mais e mais venal. O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não está em condições de permitir-se ideais. Precisa comprar comida para sua família. Nesta época nossa temos visto um escandaloso declínio tanto da moral pública quanto da moral privada. De pessoas cuja vida está constantemente sujeita à falta de qualidade, não cabe esperar qualidade. Não se pode ter qualidade com produção em massa. Nós não a queremos porque dura muito. De maneira que a substituímos pelo estilo, que é uma fraude comercial destinada a produzir uma obsolescência artificial. A produção em massa não pode vender seus produtos no ano seguinte se não consegue que pareça fora de moda o que vendeu este ano. Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais resplandecentes do mundo. Mas nessas tão encantadoras cozinhas brancas a dona de casa americana é incapaz de produzir uma comida aceitável, e os banheiros resplandecentes são sobretudo um receptáculo para desodorantes, laxantes, pastilhas para dormir e todos os produtos dessa fraude organizada que recebe o nome de indústria cosmética. Fazemos as melhores embalagens do mundo, senhor Marlowe. Mas o que há dentro é na maior parte só lixo".
(Tradução de Sérgio Rebouças)
E para quem quiser conferir o original:
"'There's a peculiar thing about money,' he went on. 'In large quantities it tends to have a life of its own, even a conscience of its own. The power of money becomes very difficult to control. Man has always been a venal animal. The growth of populations, the huge costs of wars, the incessant pressure of confiscatory taxation-all these things make him more and more venaL The average man is tired and scared, and a tired, scared man can't afford ideals. He has to buy food for his family. In our time we have seen a shocking decline in both public and private morals. You can't expect quality from people whose lives are a subjection to a lack of quality. You can't have quality with mass production. You don't want it because it lasts too long. So you substitute styling, which is a commercial swindle intended to produce artificial obsolescence. Mass production couldn't sell its goods next year unless it made what it sold this year look unfashionable a year from now. We have the whitest kitchens and the most shining bathrooms in the world. But in the lovely white kitchen the aveitage American housewife can't produce a meal fit to eat, and the lovely shining bathroom is mostly a receptacle for deodorants, laxatives, sleeping pills, and the products of that confidence racket called the cosmetic industry. We make the finest packages in the world, Mr. Marlowe. The stuff inside is mostly junk.'"
Entremear é viver a experiência do entremeio, do que está entre a memória e a descoberta. Por uma estética da descoberta nos intervalos. Pela pesquisa e vivência do gosto. Viver e outros prazeres; viagem e outras artes; entretenimentos e outras polêmicas.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
sexta-feira, 20 de abril de 2012
Touradas da Real Maestranza de Sevilha
Aproxima-se a Feria de Sevilla, a famosa Feria de Abril, esperada para o próximo dia 23: a fantasia e as sugestões andaluzas vertidas desde os olhos das sevilhanas, as casetas, o cante e o baile, os finos e as manzanillas de Jerez em volumes inconfessáveis; mas, sobretudo, a festa popular que para mim mais a singulariza, já iniciada duas semanas antes, na Real Maestranza de Caballería (a Praça de Touros de Sevilla): os toreos ou touradas, isto é, as corridas de touros de lidia, tradição que a modernidade divide entre o encanto estético dos aficionados e o asco de - talvez - meio mundo, ou mais. Livre de suscetibilidades racionalistas (ou de qualquer outra espécie), com o espírito - para valer-me de uma imagem de Onfray - avesso ao de quem comparece a um lugar com a Bíblia numa mão e a Declaração de Direitos Humanos na outra, rendi-me ao chamado e, no Domingo da Ressurreição, estava eu no Tendido 9 da Maestranza, a assistir às voltas do sevilhano Morante de la Puebla, do alicantino José María Manzanares e do jovem sevilhano, menos conhecido, Daniel Luque; e dos touros de Pedro Domecq. Morante e Manzanares são dois clássicos da arte; este último, aquele domingo, resultou ser o único triunfo, apesar das expectativas de todos também com Morante. Parece que os touros não estavam tão bem, dizia a crítica.
Aquilo tudo é de um efeito incrível; não se desprende com facilidade, há que predispor-se aos silêncios, aos desafios, à coragem compartilhada, à dança dos passos, às vozes e olhares trocados, à proximidade da morte para uns e outros. Não estou falando de crueldade, que é outro assunto (nem quiçá terão sido especiais sentimentos desse tipo que inspiraram a proibição das corridas na Comunidade da Catalunha, em que por outro lado perduram outras práticas pirotécnicas de - digamos - não especial apreço pelo animal).
Uma arte cruel, que seja. A arte, às vezes, não se mostra sem sacrifícios.
Mas quem seria eu, brasileiro em terras estranhas, para explicar algo tão próprio da alma espanhola? Deixo para o peruano (no Peru também há corridas) Mario Vargas Llosa, que em 2000 esteve na Feria de Abril e pronunciou um discurso memorável chamado "El Pregón de Sevilla", reunido num volume chamado Sentimento del Toreo, com que passei uma agradável tarde de sábado. Alguns entremeios selecionados:
"Los toros son un ingrediente tan esencial de esta Feria como el sol, el vino, la música o la picardía que refulge en los ojos de las sevillanas. Pero, a diferencia de lo que ocurre con la danza, el canto o las hijas de esta tierra a cuyo hechizo se rinden todos, la fiesta de los toros no ha merecido, ni merecerá nunca, la aprobación general".
"...es, ante y sobre todo, una fiesta popular, a la que imprimen la poderosa corriente de vida y de entusiasmo que la sustenta, y su autenticidad y energía, los miles de millares de hombres y mujeres de toda suerte y condición que en ella gozan y se encuentran y reconocen y fraternizan en la emoción compartida, en la explosión del aplauso o el flamear de los pañuelos pidiendo un trofeo para el diestro que cumplió, o en la silbatina y el abucheo al que defraudó, sentimientos elementales y volubles que se vuelcan con una libertad y una sinceridad ya casi ausentes en todas las otras manifestaciones colectivas, sobre todos las de deportes, empezando por el fútbol, donde, a diferencia de lo que ocurre con la fiesta de toros, el aficionado no va a admirar lo digno de ser admirado y a silbar lo indigno, lo feo y la chapuza, sino a hacer una exhibición de partidarismo regimentado: aplaudir y vitorear la jugadas del equipo propio y abominar y negar las del contrario. Por eso, el fútbol ya no tiene aficionados; sólo hinchas, es decir, partidarios, y, a menudo, fanáticos. En los toros todavía se conserva viva esa imparcialidad del amante de las artes, que entra a un museo, abre un libro, se acomoda en la sala de conciertos o de danzas, con el ánimo dispuesto a dejarse subyugar, y que sólo muy a pesar se resigna a desaprobar lo que ve, lee o escucha, cuando no responde a sus expectativas".
"En este exponerse con apenas un trapo rojo en las manos a las astas de esa bravía montaña de cuatrocientos o quinientos kilos de nervios y músculos educada para embestir y matar anida un resquemor ético, de hidalguía, de escrúpulo y solidaridad, una recóndita búsqueda de paridad, de compartir el riesgo..."
segunda-feira, 2 de abril de 2012
Mark Lanegan
Avisa-me o amigo Glauco Sobreira que Mark Lanegan está em tour na Europa, com duas apresentações na Espanha. Uma delas ontem, no Kapital Theater de Madrid; a outra hoje, na sala Apolo em Barcelona. O amigo teve a privilegiada oportunidade de chegar a Lisboa no sábado passado, para a primeira apresentação do músico e de sua banda na Península. Eu, infelizmente, não tive tempo de rumar para o Norte ontem (menos ainda hoje), mas o assunto me dá ensejo para um entremeio desse artista singular, marcado pela voz soturna e por produções solo cheias de boas surpresas - para além de suas incursões no grunge mais cru (às vezes intragável). Destaque para seu último álbum, Blues Funeral, do qual vai oferecida a seguir a mostra para mim mais bem sucedida, o slow Phantasmagoria Blues.
Assinar:
Postagens (Atom)